01/11/2017
Ano 20 - Número 1.051

 

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SHEILA SACKS

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Sheila Sacks



AK-47: Os 70 anos de um ícone sinistro


Sheila Sacks, colunista - CooJornal







No livro “Gomorra”, sobre a máfia napolitana, o jornalista italiano Roberto Saviano reserva um capítulo de 31 páginas para dissertar sobre o fuzil russo Avtomat Kalashnikova, mais conhecido como AK-47. Diz que a arma matou mais do que a bomba atômica de Hiroshima e Nagasaki, do que o vírus HIV, mais do que todos os atentados terroristas e todos os terremotos. Assinala que dezenas de países usaram o fuzil em guerras civis na Argélia, Angola, Bósnia, Burundi, Camboja, Chechênia, Colômbia, Congo, Haiti, Caxemira, Moçambique, Ruanda, Serra Leoa, Somália, Sri Lanka, Sudão e Uganda.

Saviano lembra os dois presidentes que morreram sob o fogo do Kalashnikov: o chileno Salvador Allende, em 11 de setembro de 1973, no palácio presidencial de “La Moneda”, em Santiago, no golpe militar que instaurou o regime ditatorial do general Augusto Pinochet; e o egípcio Anwar Sadat, em 6 de outubro de 1981, no Cairo, durante uma parada militar, três anos depois de ter assinado dois importantes acordos de paz com Israel, em Camp David. Mortes que se somam a de outros políticos, como a do general italiano Dalla Chiesa, que foi prefeito de Palermo, assassinado em 1982, e a do ditador comunista da Romênia, Nicolae Ceausescu, fuzilado em 1989. “Mortes de excelência” que segundo Saviano garantiram “uma verdadeira publicidade histórica” ao AK-47.

Concebido pelo general Mikhail Kalashnikov, que morreu em 2013, aos 94 anos, e incorporado ao exército soviético em 1947, o AK-47 é o fuzil mais popular da terra e estima-se que 250 mil pessoas são mortas anualmente baleadas pela arma. Para comemorar os 70 anos de sua invenção, foi inaugurada em uma praça de Moscou, em 19 de setembro, a estátua de Kalashnikov empunhando o célebre fuzil que, há décadas, é um dos maiores sucessos russos de exportação.

Símbolo do liberalismo

Com mais de 100 milhões de exemplares espalhados pelo mundo, o AK-47 está na bandeira de Moçambique e na bandeira do grupo fundamentalista islâmico xiita Hezbollah; nos brasões do Timor Leste e do Zimbábue; em centenas de emblemas de grupos políticos e nos vídeos de Osama Bin Laden. “É um símbolo do liberalismo, um ícone absoluto”, abaliza o autor. E explica: “A invenção desta arma permitiu a todos os grupos de poder e de micropoder ter um instrumento militar. Ninguém, depois da AK-47 pode dizer que foi vencido porque não tinha acesso a armas.”

Se na África Ocidental, o fuzil russo pode custar 50 dólares, no Iêmen é possível encontrar um AK-47 usado de segunda e terceira mãos por 6 dólares. É o que afirma Saviano em seu livro. “O kalashnikov permite que todos se tornem soldados, todos, até crianças esquálidas, e transformou em generais das Forças Armadas pessoas que não conseguiriam guiar um rebanho de ovelhas”, ironiza.

O jornalista revela que as drogas sustentam as compras dos AK-47 por grupos armados. Sejam de guerrilheiros, terroristas, paramilitares ou traficantes. “Coca em troca de armas”, enfatiza. Destaca o exemplo do ETA, o grupo separatista basco considerado terrorista pela União Europeia, que enviava cocaína através de seus militantes para receber, em troca, armas da Camorra, a máfia napolitana. Não somente kalashnikov, mas explosivos e lança-mísseis. Conhecido pelo seu histórico de quatro décadas de violência e mortes, resultando em mais de 800 vítimas fatais, o ETA obtinha a cocaína através de seus contatos com grupos guerrilheiros colombianos.

Queda do comunismo ajudou

Com a queda da “cortina de ferro” – expressão usada por Winston Churchill, em 1946, para definir as áreas na Europa sob o domínio da União Soviética – e o fim da chamada “Guerra Fria”, países como Romênia, Polônia e a ex-Iugoslávia ficaram com os seus arsenais abarrotados de armas russas e precisando se reestruturar. O desmantelamento da União Soviética em 1991, precedido pela queda do Muro de Berlim, em 1989, criou um novo cenário político-econômico na Europa e abriu as fronteiras para o mercado ilícito das armas, dirigido principalmente para grupos políticos armados da África, América Latina e do próprio Balcãs, como a Bósnia e a Sérvia.

De acordo com Saviano, a máfia napolitana pagava informalmente a dirigentes comunistas em decadência a manutenção desses depósitos de armas estocadas nos próprios países de origem. Dependendo da conveniência, essas armas eram retiradas e levadas para a Itália para serem negociadas. “Os fuzis vinham empilhados em caminhões militares que ostentavam o símbolo da OTAN ( Organização do Tratado do Atlântico Norte). Eram grandes carretas roubadas das garagens americanas da base da OTAN, em Nápoles, que graças àquela inscrição, podiam rodar tranquilamente pela Itália.”

Antes, na década de 1980, durante o conflito entre a Argentina e a Inglaterra na Ilha das Malvinas, no Atlântico Sul, a Camorra também entrou no circuito para a venda informal de armas para a defesa argentina. O jornalista afirma que devido ao isolamento econômico do país à época, “ninguém teria lhe vendido oficialmente”. A chamada Guerra das Malvinas durou dois meses e foi um fiasco para a máfia. “Poucos tiros, poucos mortos, pouco consumo.” Ele conta que no mesmo dia que foi decretado o fim do conflito, o serviço secreto inglês interceptou um telefonema intercontinental entre a Argentina e uma localidade em Nápoles. “Aqui a guerra acabou”, falavam da Argentina. “Não se preocupe, haverá outras...”, responderam do outro lado do Atlântico.

Saviano é categórico ao ressaltar o poder de fogo dos clãs da região da Campânia, no sul da Itália, e de sua capital Nápoles e arredores, nas décadas de 1980 e 1990: “As guerras, da América do Sul aos Bálcãs, são feitas com as garras das famílias da Campânia.” Em Nápoles, a Camorra já fez 3.600 mortos nos últimos 30 anos.

Fuzis com a marginalidade

No Brasil, em junho, a polícia civil carioca descobriu no terminal de cargas do Aeroporto Internacional do Rio de Janeiro uma grande leva de armamentos escondidos em aquecedores de piscinas dentro de containers vindos de Miami. Foram apreendidos 45 fuzis AK-47 que iriam abastecer os traficantes nas favelas, no valor de R$ 1,6 milhão. Na ocasião a secretaria de Segurança informou que desde o início de 2017, 250 fuzis já tinham sido retirados das mãos de bandidos. “No Rio de Janeiro, traficante só tira onda de macho por conta disso, de ter o fuzil. A hora que tiver uma pistola, ele vai dar meia volta”, comentou o titular da Segurança, Roberto Sá, repetindo com outras palavras as observações de Saviano acerca da portabilidade do AK-47.

Pelas contas da polícia do Rio de Janeiro, cada fuzil vendido aos traficantes no mercado negro tem um custo de 20 mil reais (em torno de 6,6 mil dólares). Saviano escreve em “Gomorra” que o valor de um AK-47 está diretamente ligado à violação dos direitos humanos. Quanto mais barato o fuzil, pior são as condições de civilidade e cidadania.

Preocupado com a disseminação dessas armas de alta letalidade, contrabandeadas principalmente do Paraguai e da Bolívia, o governo brasileiro sancionou uma lei, em 26 de outubro, que torna crime hediondo, com prisão imediata e sem direito à fiança, o porte ilegal de fuzis e outros armamentos restritos às áreas militares. Somente no estado do Rio de Janeiro, do início do ano até agosto foram apreendidos 347 fuzis, 149 a mais do que em 2016.

Vivendo recluso

Desde a publicação de “Gomorra”, em 2006, Roberto Saviano vive sob escolta policial, devido a ameaças de morte da Camorra. Em sua penúltima obra, “Zero Zero Zero” (2013), que desvenda as rotas e o tráfico de cocaína no mundo, ele registra uma dedicatória especial, logo na primeira página: “Dedico este livro a todos os carebinieri da minha escolta. Às 38 mil horas vividas juntos. E àquelas que ainda viveremos. Onde quer que seja.”

Onze anos depois do seu livro de estreia – que foi transportado para as telas de cinema e depois transformado em série de TV - Saviano passa a maior parte de seu tempo nos Estados Unidos, recluso, ainda que publicando nos meios de comunicação e escrevendo livros, como o recente romance “La Paranza dei Bambini” (O bando dos meninos), de 2016, sobre a deliquência juvenil em Nápoles. Lamenta que “Gomorra”, publicado quando tinha 26 anos, tenha afetado drasticamente a vida de sua família, que teve de sair de Nápoles. “Minha mãe sofreu um infarto e me senti culpado. Vim correndo dos EUA e, em parte, foi porque me senti como se lhe tivesse dado o golpe no coração (...) E meu irmão, a quem amo demais, o mesmo. Ele me diz que está comigo, mas sei que está cansado de aguentar tanto.”

As confissões foram feitas ao jornalista Daniel Verdú, do “El Pais” (29.08.2017), em um parque na cidade de Bolonha, sob os olhares atentos de cinco carabiniere. Apesar do enorme sucesso internacional – “Gomora” vendeu 10 milhões de exemplares em 40 idiomas - Saviano admite que hoje não teria escrito o livro da mesma maneira. Jurado de morte pela Camorra, ele tem pesadelos e passa por períodos de depressão. “Eu os desafiei, estava convencido de ser invencível.” Mas, em “La Paranza dei Bambini”, Saviano volta ao tema da máfia napolitana, focando em um grupo de adolescentes da Camorra, em Nápoles, que circulava pelas ruas e bairros em motos, atirando com seus fuzis AK-47, amedrontando e controlando seus moradores. Um enredo que desagradou à população e aos empresários da cidade que acusam o jornalista de criminalizar Nápoles e espalhar para o mundo uma imagem negativa do lugar.

Porém, o romance se baseia em fatos reais, a partir de uma investigação desenvolvida pelos promotores antimafia Henry Woodstock e Francesco De Falco e que culminou, em 2015, com a prisão de dezenas de pessoas. Assim sendo, mesmo sob protestos e ameaças, Saviano não tem como excluir o AK-47 de sua literatura.


(1º de novembro, 2017)
CooJornal nº 1.051


Sheila Sacks é jornalista e trabalha em Assessoria de Imprensa na cidade do Rio de Janeiro.
Rio de Janeiro, RJ
http://sheilasacks.blogspot.com

 


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