13/09/2013
Ano 16 - Número 857

 

ARQUIVO
SHEILA SACKS



 

Sheila Sacks


As mil e uma histórias de uma sinagoga na Croácia
 

Sheila Sacks, colunista - CooJornal

Em Dubrovnik, no sul do país, casa de orações resistiu ao terremoto de 1667,
a dois conflitos mundiais e à guerra na Croácia nos anos de 1990

 


Em meio a lojas de comestíveis, quinquilharias e souvenirs em uma das muitas ruelas estreitas tomadas por escadarias de pedras desalinhadas que levam as partes mais altas da cidade amuralhada de Dubrovnik, uma porta de carvalho anuncia em letras douradas a existência de uma sinagoga e do “Zidovsky Muzej”, um espaço com peças de seu acervo. Trata-se da segunda mais antiga sinagoga da Europa (a de Praga é do final do século 13), estabelecida em 1352 e reconhecida legalmente em 1408.

Situado na Ulica Zudioska (rua dos judeus), nº 5 - no antigo gueto judaico que se expandiu por conta da chegada dos judeus da Península Ibérica (sefarditas) expulsos da Espanha (em 1492) e posteriormente de Portugal (1496) -, o estreito sobrado de pedra branca abriga na parte superior a silenciosa sinagoga da Idade Média e no andar abaixo uma sala em penumbra com alguns objetos religiosos. Uma senhora de ar compungido cobra 25 kunas (cerca de 12 reais) pelo ingresso e avisa que estão proibidas fotos na visita que transcorre breve e um tanto melancólica.

No interior da sinagoga, remodelada em meados do século 17 em um estilo barroco que contrasta com suas origens medievais, pesados móveis de madeira escura e ornamentos de prata abarrotam o pequeno recinto. Pelas janelas que se abrem para um paredão que os dedos parecem alcançar apenas uma solitária réstia de claridade recorta de luz um canto do comprido banco de madeira que se estende por toda a parede. É difícil imaginar que o lugar possa reunir mais de 30 pessoas com o mínimo de conforto. No entanto, o local agora recebe alguns turistas curiosos de bermudão e sandálias que, exaustos pelo ritmo das caminhadas, aproveitam para tirar um cochilo, falar ao celular ou simplesmente recuperar o fôlego naquele ambiente sossegado e recluso.

Cercada por muralhas e banhada pelo mar Adriático, a cidade velha de Dubrovnik – do croata dubrava que significa bosque de carvalhos - fica no extremo sul do país e foi fundada no século 7. Alguns historiadores, porém, contestam essa versão devido a descobertas arqueológicas que mostram vestígios de construções e utensílios da época grega, antes da era comum. A cidadela tem seus imóveis e fontes preservados nos mesmos moldes do século 13, com apenas duas entradas para a esplanada principal e não mais de 4 mil residentes. Em 1929, em visita à cidade, o dramaturgo nascido na Irlanda George Bernard Shaw (1856-1950), encantou-se com o cenário: “Se querem ver o paraíso na terra, venham a Dubrovnik”, declarou. Nos últimos anos o turismo aumentou e a cada verão 9 milhões de turistas visitam a Croácia (quase o dobro de sua população), grande parte se direcionando para essa estância da ensolarada região da Dalmácia, declarada Patrimônio Mundial da Unesco em 1979 (a moderna Dubrovnik tem 43 mil habitantes).


Gueto é estabelecido em 1546

Os historiadores contam que a sinagoga de Dubrovnik remonta ao início do século 15, mas há registros da presença de um médico judeu contratado pela administração da cidade em 1326 e de comerciantes itinerantes em 1368. Na época, Dubrovnik era conhecida pelo nome italiano de Ragusa (rocha, no antigo idioma romano), constituindo-se em um importante porto comercial que mantinha ligações com as cidades da costa leste da Itália e da bacia do Mar Egeu onde existiam comunidades judaicas. Os judeus eram tolerados como comerciantes transitórios na região que esteve sob o governo da República de Veneza de 1205 a 1358, quando enfim conquistou a sua independência e passou a ser uma cidade-estado (Dubrovnik fica a duas horas de barco de Veneza).

A comunidade judaica local teve um aumento significativo com a chegada dos judeus em fuga da Espanha e de Portugal, no final do século 15, muito deles a caminho da Turquia, mas que acabaram se instalando em Dubrovnik. Anos antes do édito de expulsão, os reis Fernando de Aragão e Isabel de Castela já haviam instituído em 1478 o Tribunal do Santo Ofício da Inquisição na Espanha para oficializar a conversão forçada de judeus e mouros.

Em 1546, com o crescimento da população judaica – formada inclusive por marranos (judeus convertidos que exerciam o judaísmo secretamente) e cristãos-novos - as autoridades permitiram o assentamento dos judeus no extremo noroeste da cidade amuralhada, estabelecendo o gueto na Ulica Zudioska com um pórtico que o separava das demais moradias. Entretanto os judeus que não queriam permanecer confinados e seguiam para fora das muralhas se viam pressionados à conversão pela Igreja Católica.


Tempos difíceis e catástrofe

Nos 450 anos como cidade independente (em 1808 foi conquistada por Napoleão), houve muitos episódios de perseguições, execuções, livros judaicos queimados em praças públicas e principalmente leis restritivas como as que impediam os judeus de adquirirem terrenos ou casas. Mas, muitos se voltaram para o comércio marítimo, investindo em navios e importando lã e especiarias do Oriente. Outros se tornaram exímios artesãos, conceituados médicos e intérpretes, dado o seu conhecimento de línguas. Porém um expressivo contingente de marranos se deslocou para a região vizinha que corresponde a atual Bósnia-Herzegovina predominantemente muçulmana.
Ainda nesse período, em 1667, ocorre um terremoto de graves proporções que atinge Dubrovnik, destruindo grande parte de seus prédios e vitimando 5 mil moradores, dentre eles muitos judeus. A sinagoga atingida pela catástrofe também precisou ser restaurada. Cem anos depois, 218 judeus viviam na cidade que tinha uma população de 6 mil habitantes.

A partir da conquista de Napoleão e nos próximos sete anos em que Dubrovnik esteve sob o governo francês, os judeus alcançam a igualdade jurídica, com a anulação das medidas restritivas impostas pela administração anterior. Porém em 1815, quando a cidade passa a pertencer ao Império Austro-Húngaro, novas sanções são impostas aos judeus de Dubrovnik. Passados 50 anos, as sanções já estão suspensas e os judeus são autorizados a comprar imóveis, a exercerem uma gama variada de profissões e a usufruírem plenos direitos jurídicos. Em 1830 a sinagoga de Dubrovnik conta com 260 filiados.


Judeus croatas morrem em campos de concentração

Na 2ª Grande Guerra Dubrovnik cai nas mãos do exército italiano fascista. Em abril de 1941 a Croácia estabelece um estado independente pró-nazista que abrange as regiões onde hoje ficam as repúblicas da Bósnia e parte da Sérvia. Quarenta mil judeus viviam nesse conglomerado, restando nove mil após a guerra (perto de 3 mil foram enviados para o campo de Auschwitz). Os judeus de Dubrovnik, em torno de 87, procuram refúgio nas ilhas do arquipélago Elafiti, no mar Adriático, a uma hora de barco da cidade. Ao final do conflito, 28 deles morrem no Holocausto e a maioria dos que sobrevivem imigra para Israel, Estados Unidos e América do Sul.

Atualmente contam-se cerca de 30 judeus em Dubrovnik, ainda que o censo oficial de 2001 só registre 17. O censo também listou 495 judeus em toda a Croácia que no início da década de 1940 somavam 25 mil. Com a invasão nazista e a instalação do governo fascista na Croácia, a comunidade judaica existente foi dizimada e dentre os que sobreviveram ao Holocausto – cerca de 5 mil - muitos renunciaram a sua cidadania para se estabelecer em Israel, a partir de 1948 quando se torna um estado soberano.


Sinagoga é atingida por foguetes

Durante a guerra dos croatas contra os sérvios (1991/1992) pela independência da Croácia da antiga Iugoslávia, Dubrovnik foi cercada e a sinagoga teve suas janelas e telhados destruídos pela ação de foguetes e granadas. O prédio também sofreu abalo em sua estrutura e parte do acervo histórico foi então levado para os Estados Unidos. Em 1998, após decisão judicial, as peças são devolvidas. Uma Torá originária da Península Ibérica e um tapete árabe ofertado pela rainha Isabel da Espanha a seu médico judeu, ambos do século 13, são os objetos considerados mais valiosos. Em 2003, o então presidente de Israel Moshe Katsav em visita à Croácia conhece a sinagoga, cuja recuperação só se conclui em 1997. Desde então, com o incentivo do governo croata, voos fretados de Israel para Dubrovnik trazem em média 250 turistas semanalmente à cidade nas temporadas de verão.

Um fato que merece menção no histórico da restauração da sinagoga é o empenho solidário de um casal católico no processo. Em 1996, Otto e Jeanne Reusch após visitarem o templo resolvem se engajar nos esforços de colher doações para a fundação instituída em 1992, em Washington, com o intuito de reconstruir a sinagoga, a “Rebuild Dubrovnik Foundation”. Em pouco tempo arrecadam 35 mil dólares e um ano depois retornam a Dubrovnik e participam da reinauguração da sinagoga.


Depois da guerra

A Kehilat (congregação) de Dubrovnik foi liderada pelo rabino Baruch Salamon até maio de 1943 quando o religioso foi enviado a um campo de concentração e depois executado. A guarda da casa de orações ficou então com a família Tolentino que diante da ofensiva nazista escondeu entre amigos croatas os objetos religiosos e de cerimonial da sinagoga que depois da guerra foram devolvidos à sinagoga.

Em 1992, novo contratempo: os rolos da Torá, os ornamentos de prata e cobre e outros objetos valiosos da sinagoga são despachos para os EUA por conta da guerra na Croácia. Na época líder da comunidade judaica, Michael Papo considerou mais seguro liberar o acervo sagrado para bem longe do conflito com receio de sua destruição ou de uma possível falta de cuidado, por parte dos judeus de Dubrovnik, na sua preservação. Em 1998, vivendo em Nova York, Papo defendeu a iniciativa afirmando que os casamentos fora da tradição judaica tinham devastado o pouco de religiosidade que havia restado na comunidade, a tal ponto que o seu sucessor não seria um judeu conforme prescreve a lei judaica (Halachá). Entretanto, a Suprema Corte do estado de Nova York neste mesmo ano determinou o retorno dos pergaminhos a Dubrovnik, entendendo que até as pequenas comunidades judaicas merecem conservar os seus tesouros religiosos.

Uma questão que divide opiniões, já que muitas organizações judaicas temem o desaparecimento desses objetos ou sua exposição em ambientes profanos face à progressiva marcha de assimilação dessas comunidades. Por outro lado, estudiosos de história e documentação, principalmente os que se dedicam ao registro das comunidades judaicas da Idade Média na Europa central e oriental, argumentam que a transferência dos objetos religiosos para os EUA e Israel contribuem para a total extinção dessas comunidades, afastando-as de seu passado e negando-lhes um possível futuro.


“Sinagoga sem judeus”

A esse respeito, as denominadas “sinagogas sem judeus” se inserem, sob uma perspectiva mais ampla, na classificação de “monumentos” emblemáticos, aquelas construções que à parte a sua arquitetura física e o ambiente muitas vezes adverso representam momentos determinantes da história humana e dos quais são exemplos notórios, pelo horror e crueldade, os antigos campos de extermínios nazistas como o de Auschwitz. O esloveno Boris Pahor, de 100 anos, sobrevivente do Holocausto, observa que a preservação desses lugares tem a valia de “dar continuidade à presença dos mortos no mundo dos vivos”. Mas, em seu livro “Necrópole” ele também externa sua preocupação quanto aos sentimentos e as imagens que possam surgir nas mentes dos turistas que seguem o guia em suas explicações. Isso porque Pahor, a partir de uma visita ao campo de concentração onde foi prisioneiro dos nazistas em 1994, notou a falta de “familiaridade” e talvez até de consciência do grau de degradação e de infâmia a que foram submetidos, sem piedade, milhões de seres humanos.

Uma observação válida aplicável a todos os “monumentos” exaustivamente visitados por legiões de turistas. E em se tratando da minúscula sinagoga de Dubrovnik não caberia ser diferente. Entretanto, mantê-la aberta aos turistas, mesmo sem a presença cotidiana de judeus e a familiaridade necessária, garante a sua sobrevida e areja os seus aposentos. E mais: inspira momentos mágicos de reflexão e um retorno à ancestralidade, numa espécie de conexão suprarreal para além do mundo físico e limitado. Experiências e instantes atemporais percebidos em vários desses “monumentos” judaicos que desafiam as regras das dimensões universais, reinventando uma memória cósmica onde o passado e os mortos se fazem presente acalentando a jornada dos viventes na terra.


Fontes :
Steve Rodan: “Dubrovnik’s question: Does a synagogue need Jews?” (JweeKly.com /1998)
Rivka e Ban-Zion Dorfman: “Synagogues Without Jews” (Philadelphia: Jewish Publication Society/2000)
United States Comission for The Preservation of America’s Heritage Abroad: “Jews Heritage sites in Croatia-Preliminary Report” /2005)
Arthur Wolak: “A visit do Jewish Dubrovnik” (The Jerusalem Post/ 2008)
David Pessoa Carneiro: “Memórias da Guerra” (O Globo/2013)



(13 de setembro/2013)
CooJornal nº 857


Sheila Sacks é jornalista e trabalha em Assessoria de Imprensa na cidade do Rio de Janeiro.
Rio de Janeiro, RJ
ssacks@oi.com.br
http://sheilasacks.blogspot.com


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