31/05/2008
Ano 11 - Número 583


Sheila Sacks
ARQUIVO

 

Sheila Sacks




CLICHÊS, LOBBIES E SLOGANS

 

Declarado independente em 1948, o Estado de Israel só começou a fazer sentido no imaginário popular, uma dúzia de anos depois, através dos belíssimos olhos azuis de um star internacional, protagonista de um dos mais comoventes blockbusters épicos de todos os tempos. Com uma trilha sinfônica premiada (Oscar e Grammy), o filme norte-americano “Exodus” de Otto Preminger, com o galã Paul Newman vivendo o capitão Ari Ben Canaan, estourou nas telonas dos principais centros urbanos do planeta, em 1960, provocando uma onda de simpatia mundial em relação à minúscula e aguerrida nação que, apesar das condições adversas que enfrentava continuadamente (até então as guerras da independência, de 47 a 49, e do Canal de Suez, em 1956), resistia, não se intimidava e nem desistia.

Embalada por um signo solidário inatacável - o de servir de refúgio aos perseguidos pelos regimes autoritários, às vítimas do preconceito e aos sobreviventes do Holocausto -, a aspiração milenar do povo hebreu em busca de um abrigo legal e incontestável, incorporou-se, de forma genial, ao mito da aventura e da coragem, graças ao talento e a prodigiosa pena do jornalista e escritor americano Leon Uris (1924-2003). O autor do romance “Exodus”, de 600 páginas, que deu origem ao filme, teve o festejado mérito de apresentar ao grande público (mais de 15 milhões de exemplares em 35 idiomas) o lado heróico de um povo tipificado pelo sofrimento e humilhações.

Essa reviravolta de bom augúrio, porém, não durou mais que duas décadas. Desde os meados dos anos 80, após a guerra com o Líbano, ao estado de Israel não é suficiente defender militarmente o seu território real. É preciso preservar o seu legado histórico, ético e moral nos preciosos espaços das áreas midiática e virtual, cada vez mais apinhados de competentes e ágeis hackers em desinformação e difusão de mensagens tendenciosas e perniciosas.

COVA DE LEÕES

O histórico dos embates travados nos gabinetes da diplomacia européia, a partir de 1897, quando da realização do primeiro Congresso Sionista, na Suíça, e o empenho do jornalista húngaro Theodor Herzl (1860-1904) na campanha pela criação de um estado para a população judaica, face ao clima de anti-semitismo reinante em Paris, são fatos que comporiam uma bela série de TV, um filme de época revelador, e até um best seller mundial. Entretanto, esses antecedentes da história de Israel ainda permanecem fadados aos livros didáticos, às pesquisas acadêmicas e a artigos oficiosos em datas comemorativas. Traduzir e verter para as diferentes linguagens da mídia o exemplo único de um povo que soube esculpir o seu destino nas maciças muralhas da intolerância e do estigma seculares, é tarefa que se impõe nesse terceiro milênio de arte e jornalismo tecnológicos. Com versatilidade, habilidade e sem amadorismos. Os clichês que ajudaram a erguer e moldar essa perversa cidadela de horror, autêntica cova dos leões, covardemente impingida e perpetuada como um suposto castigo ou vingança, precisam vir abaixo, implodidos pela própria arrogância que os sustentou. Afinal, o lobby acusatório de deicídio atormentou centenas de gerações, respondendo pela morte violenta e cruel de milhões de pessoas e por danos morais irremediáveis a outros milhares acuados pela calúnia. Seqüelas que nenhuma suposta indenização pecuniária tem o dom de curar.

Também os slogans preconceituosos que ainda perseguem os descendentes de Moisés são de causar espanto nesse terceiro milênio onde o conhecimento e a lógica deviam imperar. Enquanto no início do século passado as comunidades judaicas na Europa eram brindadas com slogans do tipo “Judeus para a Palestina” , hoje os slogans incitam, inversamente: “Judeus fora da Palestina”.

REINTERPRETAÇÃO DO REAL

Apesar dos inegáveis e meritórios esforços das organizações judaicas que labutam em várias frentes, o judaísmo e o estado de Israel enfrentam mais uma difícil batalha frente a nova retórica desta era de comunicação tecnológica, assentada em clichês, lobbies e slogans. Em seu livro “A Saga dos Cães Perdidos”, o professor de Comunicação da USP (Universidade de São Paulo) e autor de mais de 20 livros sobre linguagens e práticas midiáticas, Ciro Marcondes Filho, alerta para o fato de que o jornalismo (filho dileto da Revolução Francesa), bem como os valores de progresso, evolução e razão, foram emanações de outra época histórica, “epifenômenos das revoluções industrial e social burguesa dos séculos 18 e 19”.

Analisando os sistemas informatizados de transmissão de notícias hoje vigentes, Marcondes Filho assinala que o que se observa é a sobrevalorização da visualidade, em detrimento à literalidade, e a sobreposição de notícias fabricadas sobre os chamados fatos reais. Com a benção da TV, que valida os fatos, tornando-os “verdadeiramente” reais, conferindo uma assustadora credibilidade à máxima de que “não há vida real além da TV”. A reinterpretação do real, o expurgo da reflexão e a emoção como critério de verdade (parafraseando Umberto Eco, a verdade está nas lágrimas), são marcas desta era digital, de informação eletrônica e interativa, estruturada sob clichês. “Operar com clichês (visões do mundo parciais e preconceituosas) é mais cômodo e mais fácil para quem lida com a comunicação. Mas, acima de tudo, o clichê constrói, antecipadamente, a notícia, já que a mesma é selecionada e classificada a partir de estereótipos de quem a produz”. Daí que verdadeiro também se tornou o que toda a mídia repete e confirma. “A repetição substituiu a demonstração”.

Aí está o exemplo da Cabala da Madonna que o boca a boca da mídia vem transformando na cabala real. Há dois mil anos e nos séculos seguintes, processo semelhante de difusão e repetição recriou religiões e mitos que, ao longo do tempo, tornaram-se mais reais e, por simbiose, mais verdadeiros que os berços que lhes deram origem, favorecendo mal-entendidos e conflitos que permanecem até os dias atuais.

MELHOR HISTÓRIA

Em janeiro de 2008, coube a 824 milhões de pessoas, sendo 40 milhões no Brasil, acessarem, na rede virtual, os conteúdos desse noticiário mercadológico, ideológico, superficial, maquiado e minimalista, de forte impacto visual e velocidade, que reconstrói a informação ao sabor do cliente.

Recordistas mundiais de horas mensais em navegação (tempo médio de 23 horas e 51 minutos, segundo o Ipobe/NetRengins, em abril de 2008), os brasileiros já superam os colegas dos Estados Unidos, França, Japão e Reino Unido. “A questão não é mais do átomo, mas do bit”, enfatiza Marcondes Filho, reproduzindo o pensamento do conferencista e jornalista francês Francis Pisani, articulista do “Le Monde” (França) e “El País” (Espanha), que no artigo “Penser la cyberguerre” afirma categórico: ”Não é mais aquele que tem a bomba maior que levará aos conflitos de amanhã, mas sim aquele que apresentar a melhor história.”


 

(31 de maio/2008)
CooJornal no 583


Sheila Sacks é jornalista
trabalha, há 25 anos, na Assessoria de Imprensa da Empresa de Obras Públicas do Estado do Rio de Janeiro (Emop). Também escreve para o NOSSO JORNAL-RIO, uma publicação voltada para a comunidade judaica.
Rio de Janeiro, RJ
ssacks@oi.com.br