08/12/2007
Ano 11 - Número 558


Sheila Sacks
ARQUIVO

 

Sheila Sacks



Os cadernos de guerra de Malaparte

 

Quando o jornalista e escritor italiano Curzio Malaparte deu a partida para pôr no papel as suas crônicas pessoais sobre a guerra no velho continente, a Alemanha nazista lançava-se, com um apetite voraz, à ofensiva sanguinária sobre o território soviético, o mais cobiçado e suculento filé do front oriental. Naquele terrível verão europeu de 1941, Kurt Erich Suckert – nome de batismo de Malaparte – era correspondente do jornal Corriere della Sera, na Ucrânia, e ostentava o salvo-conduto da temida cruz gamada que o autorizava a transitar entre as barbaridades perpetradas pelas tropas germânicas em sua perversa escalada de conquista e extermínio. Também o incluía no seleto clube dos nobres adesistas, diplomatas fascistas, oficiais da Gestapo e colaboradores diretos do führer, que, nos castelos, consulados e palácios confiscados e entulhados de móveis e raridades pilhadas, citavam Homero e dedilhavam Chopin, nos suntuosos banquetes regados ao mais puro vinho de Borgonha.

Envergando a farda de oficial italiano, Malaparte cobriu os combates das forças do Eixo nas frentes da Rússia, Polônia e Finlândia, misturando-se a soldados, prisioneiros e guerrilheiros em cidades e aldeias arrasadas pelos canhões e bombardeios. Transitou pelas ruas do Gueto de Varsóvia, apinhadas de gente maltrapilha e amedrontada; presenciou o pogrom na cidade de Jassy, na Romênia, onde em uma única noite foram chacinados mais de 2 mil judeus; e conheceu as prisioneiras do bordel militar de Soroco, na Bessarábia, meninas de famílias judaicas, bonitas e inocentes, capturadas e exploradas pelos nazistas. Três momentos cruéis e dolorosos entre tantos outros que registrou, de forma espantosa, em seus cadernos de viagem. 

Consciente do conteúdo explosivo de suas anotações e certo de que as mesmas seriam destruídas se caíssem nas mãos da Gestapo, o autor confiou-as a amigos diplomatas em Berlim, Madri, Lisboa e Bucareste. Retornando à Itália em 1943, Malaparte finalizou o manuscrito e o escondeu durante algum tempo no buraco de um rochedo, perto de sua casa em Capri. “Ninguém ignora como é difícil na Itália, e em grande parte da Europa, a condição humana. E quão perigosa é a condição de escritor”, lamentava. “Mas, prefiro essa Europa em destroços, onde tudo esteja por refazer, a ter que aceitar tudo como uma herança imutável.”

Desafeto

Enfant terrible da doutrina fascista, Malaparte tornou-se desafeto do ditador italiano Benito Mussolini (1883-1945) quando publicou, em 1931, o livro “Técnica do Golpe de Estado”, obra em que ataca Adolf Hitler e o próprio Il Duce. O jornalista foi expulso do partido fascista e condenado a cumprir cinco anos de exílio na ilha de Lipari, no Mediterrâneo, pena comutada, mais tarde, por interferência direta do conde Galleazo Ciano, genro de Mussolini. Entretanto, seus livros e reportagens posteriores o levaram mais algumas vezes à condenação, desta vez trancafiado na prisão de Regina Coeli, em Roma.

De mãe italiana e pai alemão, Malaparte nasceu em 1898 na cidade de Prato, a 20 quilômetros de Florença, adotando o pseudônimo literário em 1925. Segundo ele, uma brincadeira com o nome do conquistador Napoleão Bonaparte. Aos 16 anos alistou-se no Quinto Regimento Alpino e combateu na 1ª Guerra Mundial, ganhando várias condecorações de bravura. Fundou e dirigiu diversas publicações, o que resultou em sua aproximação com políticos e membros do governo. Atuou como coordenador de imprensa na Conferência de Versalhes, em Paris (1919), e serviu como adido diplomático na Polônia (1920). Foi correspondente de guerra na Etiópia, Grécia e Iugoslávia. Escreveu em torno de 30 livros, muitos deles relatando as suas vivências nas duas Grandes Guerras.

As anotações secretas sobre o pesadelo nazista que o autor ocultou, por várias vezes, no forro de seu casaco e até em um chiqueiro de uma aldeia ucraniana, transformaram-se na obra intitulada “Kapput” (quebrado, em alemão), o seu livro mais festejado, publicado em 1944 e traduzido em mais de dez idiomas. Nele ficou retratado, de forma contundente e admirável, o poder de alcance da maldade, da impiedade e da infâmia, a abominável trindade que dominou e contagiou a Europa como um vírus devastador, reduzindo a frangalhos a sagrada imagem do ser humano, no que ele tem de mais nobre e grandioso.

No Gueto

Malaparte esteve no Gueto de Varsóvia em janeiro de 1942, depois de conhecer os guetos de Cracóvia, Lublin e Czenstochowa. Ele conta que a “cidade proibida” (assim chamada pelos nazistas) era circundada por um muro alto de tijolos vermelhos, “construído pelos alemães para fechar o gueto, como uma gaiola”. Na porta, vigiada por uma escolta de soldados armados da SS (Schutzstaffel - organização paramilitar nazista), estava afixado um edital instituindo a pena de morte para qualquer judeu que tentasse fugir. Por ordem expressa do governador alemão de Varsóvia, Ludwig Fischer, um guarda da Gestapo (polícia secreta nazista), “de olhar claro e frio”, o acompanhou “como uma sombra” durante toda a visita.

O jornalista relata que a sua presença ao lado de um guarda da Gestapo (polícia secreta nazista) despertou a curiosidade e o medo na multidão de “rostos barbudos, afogueados pelo frio, pela febre e pela fome”. Nas ruas do gueto ele se viu forçado a saltar, de espaço em espaço, por cima de cadáveres, já que “os mortos jaziam abandonados na neve, entre candelabros apagados, à espera das carroças dos coveiros”. A mortandade era grande e “muitos permaneciam na entrada das casas, nos corredores, nos patamares das escadas ou sobre as camas nos quartos apinhados de gente pálida e silenciosa”.

Malaparte observa ainda que os mortos eram recolhidos nas ruas e nas casas por grupos de jovens estudantes deportados da Alemanha, Áustria, Bélgica, França, Holanda e Romênia. “Eram jovens intelectuais educados nas melhores universidades da Europa. Falavam francês, romeno e alemão. Entretanto, agora se apresentavam andrajosos, famintos, devorados pelos insetos e ainda doloridos das pancadas recebidas, dos insultos, dos sofrimentos padecidos nos campos de concentração e na terrível odisséia que os trouxera de Viena, Berlim, Munique, Paris, Praga e Bucareste até o gueto de Varsóvia.”

Jovens coveiros

Impressionado com os jovens coveiros, Malaparte escreve: “Eu me detinha a observá-los no seu piedoso trabalho. Tinham no rosto uma luz belíssima, nos olhos, uma juvenil vontade de se ajudarem mutuamente, de socorrer a imensa miséria do seu povo. Eles levantavam os mortos com delicadeza e os colocavam nas carroças puxadas por outros jovens andrajosos e macilentos.” Dias antes, nos guetos de Cracóvia e Czenstochowa, ele tivera uma estranha experiência com outros jovens judeus que, ao vê-lo uniformizado e ao lado de um guarda nazista, foram ao seu encontro  estampando um misterioso ar de felicidade. “Parecia que a angústia da espera tinha chegado ao fim e que acolhiam aquele instante, até então temido, como uma libertação.” O jornalista conta  que ao explicar que não era agente da Gestapo e nem sequer alemão, notou que a desilusão e a angústia tomaram conta de seus rostos. “Um deles”, lembra, “já tinha tirado o xale imundo e colocado nos ombros de uma senhora”, um gesto de adeus que se repetia entre os judeus quando a polícia ia buscá-los. “Ele estava lendo, em um canto da sala, quando eu apareci à porta da casa”, relata o autor. “Levantou-se de chofre, abotoou os sapatos, endireitou os trapos sujos que lhe serviam de meias, procurou o colarinho da camisa esfarrapada debaixo da gola do paletó. Tossia, cobrindo a boca com a mísera mão.”

Sem Utilidade

Desfazer-se das roupas e distribuí-las a parentes e amigos quando a Gestapo batia à porta era quase uma rotina entre os moradores dos guetos. Malaparte recorda que viu dois judeus completamente nus, um deles um rapazote de 16 anos, caminhando sobre a neve em uma manhã glacial de inverno. Ladeados por milicianos armados da SS, eles enfrentavam um frio cortante de 35 graus abaixo de zero. Sobre essa cena incrível, narrada pelo escritor ao governador da Cracóvia, Otto Wächter (morto em 1949), este justificou “amavelmente” a situação, explicando que os judeus se despiam porque, para eles, as roupas já não tinham utilidade.

Em outra oportunidade, convidado para um jantar de gala em homenagem ao general-governador da Polônia, Hans Frank (enforcado em 16 de outubro de 1946), o jornalista se viu envolvido em um animado bate-papo sobre o gueto de Varsóvia. Era um banquete dedicado à Diana caçadora, figura mitológica, e a cúpula nazista compareceu em peso. O local era o palácio Bruhl, antiga sede do Ministério das Relações Exteriores da Polônia transformado no QG do governo alemão de Varsóvia.  No cardápio iguarias como faisões, lebres e um gamo das florestas de Radziwilow, trazido por dois criados de libré azul. Em seu dorso estava cravada uma rubra bandeirinha hitleriana com a negra cruz gamada”. Para a sua  surpresa, Malaparte foi o primeiro a ser servido pela “virtude” de ter nascido italiano. Presente à mesa, o governador de Varsóvia, Ludwig Fischer (morto em 1947), escorria com a colher um molho dourado sobre as fatias de carne e detalhava como eram sepultados os judeus no gueto: ”uma camada de cadáveres e uma camada de cal”, explicava, como se dissesse “uma fatia de carne e uma camada de molho”.

 Modelo

Saboreando um charuto após o jantar, o autor lembra que um dos convidados ofereceu-lhe, em um cálice de cristal, a tradicional bebida dos caçadores alemães, o turkischblut ou “sangue de turco”, uma mistura do rubro vinho de Borgonha, “um Volnay denso e tépido, com o pálido champagne de Mumm”. Ao seu lado, o “general-gouverneur Frank” elogiava a organização imposta ao gueto de Varsóvia, considerando-a um “verdadeiro modelo para toda a Polônia”. Por sua vez o governador de Varsóvia, Fischer, discursava sobre a eficiência de seu trabalho, assinalando, com orgulho, “que no mesmo espaço em que, antes da guerra, viviam 300 mil pessoas, estavam agora mais de um milhão e meio de judeus”. Apenas, modestamente se eximia da culpa de todos no gueto ficarem “um pouco apertados”.

Os diálogos surrealistas daquela elite cruel e cínica eram anotados mentalmente por Malaparte em sua trajetória de repórter de uma civilização em ruínas. Enquanto os homens de Hitler discorriam sobre judeus e guetos no gabinete atapetado cheirando a conhaque e tabaco, e suas mulheres – as fraus – “tricotavam ao pé do fogo de lenha de carvalho que crepitava na lareira”, a realidade nas gélidas ruas do gueto de Varsóvia não comportava eufemismos. Ali, “bandos de cães ossudos farejavam o ar atrás dos fúnebres comboios, e tropéis de meninos maltrapilhos, trazendo no semblante os sinais da fome, da insônia e do medo, recolhiam na neve os trapos, os pedaços de papel, as latas vazias, as cascas de batatas e todos aqueles preciosos rebotalhos  que a miséria, a fome e a morte sempre deixam atrás de si”.

UM NOME NAS ESTRELAS

Queridinho do presidente francês Nicolas Sarkozy (durante as eleições, em abril, perguntado pelas suas preferências literárias, o então candidato revelou aos jornalistas que é apaixonado por Kapput), Curzio Malaparte subiu a alturas poucas vezes alcançadas por seus pares, ao batizar, com o seu nome, uma estrela no espaço sideral. Isso se deu em outubro de 1980, vinte e três anos após a sua morte. O astrônomo tcheco Z.Vávrová, do Observatório de Klet, descobriu o planeta número 03479, um corpo celestial do tamanho de um asteróide gigante e o denominou de Malaparte, uma homenagem ao seu autor favorito.

Testemunha ocular da chacina de Jassy, Malaparte também se transformou em personagem e inspirou o escritor norte-americano radicado na França, Samuel Astrachan, a escrever a obra “Malaparte in Jassy”, publicada em 1989, onde o autor rememora os passos do jornalista, antes e durante o pogrom. Ainda sobre a tragédia de Jassy, o diretor do Instituto do Congresso Judaico Mundial de Jerusalém, professor Laurence Weinbaum, transcreveu trechos de Kapput em seu trabalho “A Banalidade da História e da Memória: A Sociedade Romena e o Holocausto” (2006). Especialista em assuntos do Leste Europeu, Weinbaum cita o testemunho de Malaparte ao cobrar do governo da Romênia o reconhecimento oficial de sua participação, ainda que tardio, na matança de 15 mil judeus durante a ocupação nazista.

Malaparte teve seu nome incluído na lista de autores não recomendados pela Igreja Católica, assim como foram Galileu Galilei e Baruch Spinoza. Implantado pelo Papa Paulo IV, em 1559, o Index Librorum Probitorum (Índice dos Livros Proibidos) tinha a finalidade de proibir a leitura de determinados textos (inclusive o Talmud e o Corão), sob pena de excomunhão.  Nas suas várias versões, o Index acabou se tornando uma espécie de guia dos livros que deveriam ser lidos, uma espécie de fonte de orientação para quem tentava entender o mundo através dos livros. Em 1966, o Index foi abolido pelo Papa Paulo VI.

 

(08 de dezembro/2007)
CooJornal no 558


Sheila Sacks é jornalista
trabalha, há 25 anos, na Assessoria de Imprensa da Empresa de Obras Públicas do Estado do Rio de Janeiro (Emop). Também escreve para o NOSSO JORNAL-RIO, uma publicação voltada para a comunidade judaica.
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