10/11/2007
Ano 11 - Número 554


Sheila Sacks
ARQUIVO

 

Sheila Sacks



FILOSOFIA, POLÍTICA E LIBERDADE

 

O sugestivo bordão do nosso Hino da Proclamação da República - “Liberdade, Liberdade, Abre as Asas sobre Nós” - bem que poderia servir de cartão de visita para o nosso entrevistado. Ele é filósofo de formação, com doutorado na Universidade de Paris (Sorbonne), professor titular da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e autor de mais de 10 livros sobre filosofia, política, ética e metafísica (quatro em francês e três em espanhol).

Mas, longe de se confinar em gabinetes ou salões acadêmicos, Denis Lerrer Rosenfield, 57 anos, é um militante que vai à luta para defender “as liberdades” e as escolhas individuais. Com mais de 200 artigos publicados nos principais jornais do país (O Globo, O Estado de São Paulo, Folha de São Paulo e Correio Braziliense, entre outros) e dezenas de textos incluídos em importantes livros didáticos, o filósofo gaúcho tem se revelado um combatente destemido e polêmico, dono de um arsenal de conceitos e argumentos que vem desarmando muita gente. Suas armas de fogo são a inteligência, a cultura e uma linguagem direta e acessível.

Editor da revista “Filosofia Política”, fundador da Sociedade Nacional de Pós-Graduação em Filosofia, pesquisador do CNPq, órgão do Ministério da Ciência e Tecnologia (foi seu vice-presidente em 1999), e presidente da Sociedade Hegel Brasileira, Denis Lerrer afirma, destemidamente, que não é pacifista. E dá as razões, lembrando que Churchill era a favor da guerra contra o nazismo e, graças a ele, o totalitarismo nazista foi derrotado.  

De sua Porto Alegre natal, onde vive, ensina e escreve, o autor de “Retratos do Mal”, obra que enfoca o terrorismo e os fenômenos totalitários do século XX, e de “Democracia Ameaçada”, uma análise sobre a esquerda brasileira (em que põe em xeque as ideologias e as ações das organizações e “movimentos sociais” em nosso país), fala sobre temas universais como a noção do bem e do mal, autoritarismo, religião e o sagrado direito à diferença.

Como filósofo, qual foi a sua leitura sobre o referendo realizado no país, o do desarmamento, em 2005, cujo resultado surpreendeu muita gente?

- O referendo passou várias mensagens: 1) a sociedade brasileira não aceita ser tutelada por um Estado que procura lhe impor uma determinada noção do bem. Ela retomou para si esse direito de cidadão, o de escolher aquilo que considera melhor para si. Desta maneira, os cidadãos desse país valorizaram o direito e a liberdade de escolha; 2) o Estado brasileiro deve cumprir com sua função primeira, a saber, a segurança pública e não criar um falso problema, o de que os cidadãos de bem são os responsáveis pela criminalidade; 3) urge, pois, desarmar os bandidos, reformar o código processual penal, construir presídios, reformar as polícias e controlar o narcotráfico. E essas são obrigações do Estado; 4) e, por fim, a não aceitação de propaganda enganosa, como se o referendo fosse sobre o desarmamento, quando, na verdade, o Estatuto do referendo não foi o objeto do referendo, mas apenas um artigo deste, relativo ao comércio de armas e munições.

A autoridade do Estado é em essência tirana?

- Não. Confunde-se, muito freqüentemente no Brasil, autoridade com autoritarismo. A autoridade estatal é própria de qualquer sociedade livre, que procura defender os seus direitos e as suas liberdades em suas várias acepções: liberdade econômica, liberdade religiosa, liberdade de expressão, liberdade de imprensa, liberdade política. Neste sentido, a autoridade do Estado deve estar voltada contra todos aqueles que procuram minar os fundamentos da democracia, aí incluindo a defesa da propriedade privada e do estado de direito. O autoritarismo surge, por sua vez, quando o Estado extrapola de suas funções, não assegurando essas liberdades e direitos e se colocando na posição daqueles que pretensamente saberiam aquilo que é o “melhor” para cada cidadão.

 Apostar no Estado para transformar a sociedade é apostar na força?

- Num certo sentido penso que podemos dizer que os Estados que procuram impor aos seus cidadãos aquilo que consideram certo e errado, bom e mau, se vêem obrigados a usar da força, pois homens e mulheres livres pensam por si mesmos e não aceitam essa forma de coerção. A grande aposta de transformação, no meu entender, é aquela calcada em idéias, no debate e discussão livres, no interior de uma cena pública que reconhece que somos todos iguais no exercício dos direitos e das liberdades, no uso público da razão.

 A religião ainda é o abrigo individual contra a impessoalidade das ações do Estado?

- A religião cumpre essa função de permitir ao indivíduo um recolhimento em si mesmo, no questionamento de sua conduta e dos seus, numa relação em que cada um se coloca num tipo de relacionamento direto com o absoluto, com Deus. Não é por acaso que a liberdade religiosa sempre foi considerada como uma das grandes conquistas da humanidade, pois ela permitiu o desenvolvimento da subjetividade e dos direitos dessa subjetividade contra as imposições estatais. Quando o Estado procura entrar nesse domínio da subjetividade, quando procura impor uma determinada crença ou conjunto de valores, é o reino da tirania que começa a imperar.

E o sentido da vida e os ideais? Eles se fortalecem ou ao contrário, ficam  mais fracos, naqueles que foram vítimas de um ato de força institucional?

- Normalmente, pode-se dizer que o sentido da vida e os ideais se fortalecem quando indivíduos ou grupos sociais são perseguidos ou são vítimas de atos de força. Tudo depende, no entanto, da época e da mentalidade desses indivíduos, pois os totalitarismos contemporâneos, nazista ou comunista, mostraram o quanto homens e mulheres podem ser manipuláveis por um poder estatal que não recua diante de nenhum escrúpulo moral. Atualmente, numa sociedade de massas, digital, com presença marcante dos meios de comunicação, um fenômeno desse tipo poderia ser ainda mais acentuado. Se os valores já são fracos, a manipulação seria maior.

 A escolha pelo mais fácil, ou seja, estar sempre ao lado do mais forte e do poder, é uma característica de personalidade?

- Não penso que se possa dizer isto como regra geral. Se tomarmos as pessoas como seres movidos por desejos, pela busca do prazer, por exemplo, não podemos chegar necessariamente à conclusão de que estar ao lado do mais forte signifique uma escolha mais fácil na perspectiva de realização e da satisfação pessoal. Pode, isto sim, haver a cautela, o princípio da realidade, diria Freud, do ponto de vista da postergação da realização desses desejos.

Vale tudo em nome da paz?

- Tudo depende do que se considere paz. Eu não sou pacifista. Chamberlain era pacifista, enfraqueceu a Inglaterra e fez acordos com Hitler. Churchill era a favor da guerra contra o nazismo e, graças a ele, o totalitarismo nazista foi derrotado. Naquela ocasião, ser pacifista significava compactuar com essa forma de dominação, servindo aos seus interesses. Hitler não tinha nenhuma dificuldade de defender essa forma de pacifismo, pois lhe convinha perfeitamente. Churchill lutou pela guerra e pelas liberdades.

Ainda existem nações que põem em perigo a sociedade civilizada? 

- Sem sombra de dúvidas. Há nações párias que se colocam fora das normas de vida civilizada e devem ser tratadas enquanto tais. Estados que fomentam o terrorismo como o Afeganistão talibã se colocam, por suas próprias ações, fora do estado de direito e exigem da comunidade internacional ações que ponham termo às suas iniciativas. No passado recente, a Líbia se colocou numa posição desse tipo e foi objeto de represálias que a fizeram recuar, desde os bombardeios de Reagan até as punições impostas a esse país como respostas às suas ações terroristas nas explosões de aviões.

Quais são as principais doenças espirituais do homem contemporâneo?

- Diria que a principal reside em pensar que todas as culturas e todas as formas de sociedade são equivalentes e de igual valor. Isto numa determinada época se chamou de direito à diferença. Ora, há culturas e sociedades que procuram a universalidade, valores que sejam iguais para todos, enquanto há outras que procuram impor pela força a sua própria particularidade, como se esta tivesse um valor absoluto. O terror islâmico é um exemplo deste tipo. Torna-se necessário que a civilização ocidental abandone seus sentimentos de culpa e afirme a necessidade e a liberdade de julgar moralmente.

 

(10 de novembro/2007)
CooJornal no 554


Sheila Sacks é jornalista
trabalha, há 25 anos, na Assessoria de Imprensa da Empresa de Obras Públicas do Estado do Rio de Janeiro (Emop). Também escreve para o NOSSO JORNAL-RIO, uma publicação voltada para a comunidade judaica.
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