14/07/2007
Ano 11 - Número 537


Sheila Sacks
ARQUIVO

 

Sheila Sacks


De olho no Cone Sul

 

Rota predileta dos fugitivos nazistas na década de 50, os países do Cone Sul (Argentina, Uruguai, Paraguai, Chile e sul do Brasil) se converteram, nos últimos 15 anos, na Meca do submundo de certos grupos radicais, no tocante à tarefa de arrecadar recursos para ações violentas nos quatro cantos do mundo. E, tudo leva a crer que a estréia do Hezbollah na América Latina se deu mesmo em Buenos Aires, com o envolvimento de vários diplomatas iranianos: em 19 de julho de 1994, com o atentado ao prédio da associação judaica Amia, que resultou em 85 mortes e mais de 200 feridos, e dois anos antes, no ataque que destruiu a sede da embaixada de Israel naquela cidade, com um saldo de 29 mortes e 242 feridos.  

Segundo o documentário “Hezbollah: ameaça terrorista na América Latina”, exibido pela rede de TV norte-americana Telemundo, de língua espanhola, esse grupo extremista xiita libanês (fundado no Irã em 1979) considera a Tríplice Fronteira (formada por cidades do Brasil, Paraguai e Argentina) o lugar mais importante para o movimento, depois do Líbano. Calcula-se que o comércio e o contrabando na região movimentam em torno de 3 bilhões de dólares ao ano, parte dos quais são arrebanhados para financiar atos terroristas.

Utilizando-se de ONGs (Organizações Não-Governamentais) criadas a título de benemerência social, estas instituições funcionam como autênticos corredores subterrâneos para o escoamento do dinheiro que vai sustentar o radicalismo e a intolerância em nosso planeta. Um dado curioso: no Brasil existem, atualmente, 260 mil ONGs, um número espantoso tendo em vista que em 2002 estas instituições não alcançavam a marca de 20 mil.

CÚPULA DAS AMÉRICAS

Em 2005, a cidade argentina de Mar Del Plata sediou a IV Cúpula das Américas, com a participação de 34 países, inclusive o Brasil. Em uma decisão histórica, ao final do encontro foi emitida uma Declaração assinada por todos os participantes, reconhecendo o combate ao terrorismo no continente como uma das prioridades que merecem atenção dos governos.

A participação e o empenho do Centro Simon Wiesenthal de Direitos Humanos (CSW), antes e durante o evento, foi fundamental para a elaboração dos itens 68 e 69 que tratam do assunto, em consonância aos termos propostos pelo Centro à Organização dos Estados Americanos-OEA.

Meses depois, o diretor do CSW para a América Latina, Sergio Widder, conversou conosco sobre as ações práticas que a instituição desenvolve de forma permanente, tendo em vista as três grandes ameaças que assombram as sociedades democráticas modernas: a intolerância, a impunidade e o terrorismo. Temas que, certamente, continuarão em pauta em 2009, quando se dará a V Cúpula das Américas, em Trinidad e Tobago, o país caribenho de língua inglesa, com um milhão de habitantes, situado ao largo da costa venezuelana.

RADICALIZAÇÃO

Desde 2003, o Centro Simon Wiesenthal participa do Fórum Social Mundial (realizado no Brasil por quatro vezes), buscando um maior diálogo e a aproximação com as ONGs nacionais e internacionais  presentes ao evento, cuja radicalização acerca de diversos temas políticos – notadamente no que concerne a Israel – é vista com preocupação pelo Centro.

Com escritório em Buenos Aires, o CSW está atento a toda a América Latina e seu leque de atuação tem sido ampliado em função da ascensão do terrorismo a níveis transcontinentais, como bem ficou retratado nos dois atentados na Argentina , na década de 90.

Sergio Widder, 39 anos, dirige o Centro de Buenos Aires desde a sua instalação, em 1992. Graduado em Ciências Políticas, Widder é argentino e participou diretamente da extradição do criminoso nazista Erich Priebke – que vivia na cidade de Bariloche - acusado do massacre de 335 civis na Itália, sendo 75 judeus. Como representante do CSW esteve presente na Conferência Mundial contra o Racismo (Durban, 2001) e na Cúpula Mundial sobre Desenvolvimento Sustentável (Joanesburgo, 2002), ambas na África do Sul. Também participou do Fórum Social Mundial, em Porto Alegre, em 2003, 2004 e 2005, e acompanhou, como observador, a 1ª Cúpula América do Sul-Países Árabes, realizada em Brasília (maio de 2005).

No início de 2006, Widder enviou uma carta-protesto ao Presidente da Venezuela, Hugo Chavez, pelo discurso de conotação anti-semita proferido por ocasião do Natal. O documento teve grande repercussão na mídia internacional e provocou um encontro entre Chavez e representantes da comunidade judaica venezuelana.

Com mais de 400 mil afiliados em todo o mundo, o CSW é uma ONG Judaica Internacional de Direitos Humanos (reconhecida pela ONU, UNESCO, OEA e a Comunidade Européia) e, além de Buenos Aires, mantém escritórios em Nova York, Los Angeles, Miami, Toronto, Paris e Jerusalém.

ENTREVISTA

Por que o Centro Simon Wiesenthal escolheu a Argentina, em 1977, para sede  de suas atividades na América Latina?

- Embora, a nível internacional, o Centro Simon Wiesenthal tenha sido criado em 1977, o escritório latino-americano somente iniciou as suas atividades em 1992. A cidade de Buenos Aires foi escolhida como sede regional por uma conjunção de distintos fatores. Entre eles o fato de que a Argentina abriga a maior comunidade judaica da América Latina e que, em 1992, o país abriu os arquivos sobre a chegada dos nazistas ao seu território, oferecendo assim uma oportunidade adequada para  a instalação da sede do CSW na região.

 É verdade que, apesar de convidado, Wiesenthal nunca aceitou pisar na Argentina? Por quê?

- Simon Wiesenthal nunca viajou à América do Sul porque durante décadas a região foi muito insegura para quem desenvolvia uma tarefa como a sua, devido a presença de criminosos de guerra nazistas, de outros fugitivos nazistas e de colaboradores. A partir da década de 90, com a consolidação do ambiente democrático, o cenário ficou mais favorável, mas aí a idade avançada de Wiesenthal lhe dificultava a empreender longas viagens.

O CSW alguma vez cogitou em abrir uma filial no Brasil?

- Na realidade, o Centro tem uma estrutura bem pequena e, à exceção  dos Estados Unidos, não possui mais de um escritório por região. O Brasil está sob a órbita da filial de Buenos Aires e, se bem que até este momento a nossa atuação no país foi limitada, esperamos ampliá-la em futuro próximo.

Quais são as principais atividades desenvolvidas pelo CSW na Argentina e na América Latina?

- O escritório latino-americano cumpre na região a agenda internacional do CSW. Nossos temas abrangem desde a busca dos criminosos de guerra nazistas até as manifestações de anti-semitismo e de intolerância na atualidade, assim como também a problemática do terrorismo, especialmente se levarmos em conta que a região já sofreu ataques do terrorismo internacional e que a Tríplice Fronteira continua sendo uma zona permeável e com um ambiente de arrecadação de recursos para estes grupos. Vale a pena destacar que outro importante tema de trabalho do escritório latino-americano diz respeito ao Fórum Social Mundial (FSM) e à radicalização de ONGS nos fóruns internacionais. 

O CSW tem status de uma ONG de Direitos Humanos. A instituição também atua em questões fora do âmbito da comunidade judaica?

- Sim, e de maneira muito intensa. Como exemplo vale retomar o comentário sobre o Fórum Social Mundial, no qual temos  participado desde 2003, buscando grupos moderados que apostam no diálogo e na convivência, e denunciando as ações de grupos radicais anti-Israel e anti-semitas. Outro exemplo válido são as conferências que o Centro oferece às Forças Armadas e à Polícia argentinas. O CSW é uma instituição judaica mas suas ações têm repercussão fora e dentro da comunidade.

O CSW encontra apoio e parceiros, em seus projetos, em setores e segmentos da sociedade argentina - imprensa, políticos, estudantes e intelectuais?

- Sim. De acordo com os diferentes projetos buscamos os interlocutores apropriados e em geral encontramos bom acolhimento

Quais foram as conseqüências (a curto e longo prazos), na comunidade judaica Argentina, dos atentados à Embaixada de Israel (1992) e ao prédio da Associação Mutual Israelita Argentina (AMIA), em 1994, que mataram 114 pessoas e feriram mais de 500?

- É difícil responder em poucas linhas a uma pergunta tão complexa. Os atentados nos mostraram a vulnerabilidade da sociedade argentina diante do terrorismo internacional e a falta de defesa dos judeus enquanto cidadãos argentinos. A impunidade permanece como uma sombra ameaçadora e o medo persiste diante da falha na identificação dos culpados. Apesar desta situação, a comunidade judaica continua com uma atividade pujante, não desistindo, porém, em clamar para que se faça justiça.

Em entrevista à revista “Carta Capital”, em junho de 2004, o funcionário do FBI que atuou no Brasil, Carlos Alberto Costa, afirmou que os dois atentados em Buenos Aires foram organizados no Brasil, mas por pessoas que não viviam no país. Como o CSW se posiciona diante do fato, visto que vem lutando até hoje pela total elucidação do atentado à AMIA?

- Toda pista que possa conduzir à identificação dos responsáveis pelo atentado deve ser investigada e, no caso de que haveria indícios de que o território brasileiro tenha servido como plataforma para planejar o atentado contra a AMIA, reforça ainda mais a nossa permanente posição no sentido de que a luta contra o terrorismo não é um problema nacional e sim global, e que na América Latina deve-se estabelecer políticas regionais, visto que estas atividades envolvem transações através de fronteiras, transferências de dinheiro, tráfico de armas e explosivos.

Os países, em geral, têm dificuldade em monitorar e bloquear o envio de dinheiro para financiar partidos legais que promovem atos terroristas. Há alguns anos, a América do Sul vem sendo apontada pelos Serviços de Inteligência norte-americanos como uma região onde grandes somas de dinheiro alimentam atentados em todo o mundo. O CSW também se manifesta publicamente sobre este assunto?

- Sim, tanto que nós  emitimos uma Convocação para Ação Contra o Terrorismo, na véspera da IV Cúpula das Américas, em Mar Del Plata, em 2005, e cuja Declaração Final incluiu pontos substanciais da Convocação, nos artigos 68 e 69, sobre os quais daremos prosseguimento através do Comitê Interamericano contra o Terrorismo da OEA.

A implantação do MERCOSUL favoreceu, de alguma maneira, o trânsito e os negócios de pessoas e grupos ligados ao terrorismo internacional?

- A integração regional merece ser apoiada porque pode resultar na melhoria da qualidade de vida dos povos da região. Porém, não pode servir de desculpa para o descuido dos controles sobre a circulação de indivíduos ou recursos ligados ao terrorismo internacional. Os processos de integração são uma realidade em diferentes pontos do planeta e o desafio não consiste em ir contra a integração, mas em assegurar que a integração não facilite as atividades terroristas.

Quais são os resultados da “Operação Última Chance”, lançada em 2002  para capturar os últimos nazistas criminosos de guerra?

- De acordo com os últimos informes elaborados pelo Dr. Efraim Zuroff, diretor do escritório do CSW, em Jerusalém, e responsável pela Campanha “Operação Última Chance”, já foram reportados 87 casos que foram enviados aos ministérios de diferentes países, especialmente os do Leste Europeu.

Existe a possibilidade do médico nazista  Aribert Heim - considerado o mais sádico dos criminosos -, hoje com 91 anos, estar na Espanha ou no Brasil?

Nos últimos tempos houve rumores acerca do suposto paradeiro deste criminoso, mas não seria prudente arriscar uma resposta categórica a essa pergunta. Preferimos manter a cautela à espera de notícias.

O livro de Ira Levin  “Os Meninos do Brasil”  (1976 ) apresentava o médico nazista Josef Mengele no Paraguai. Depois se comprovou que ele viveu e morreu no Brasil, em 1978. Quais são as principais dificuldades na busca e captura de criminosos de guerra?

- No caso da América do Sul, durante décadas o principal obstáculo foi a proteção que os criminosos receberam da parte das diversas nações onde se refugiaram. Talvez o caso de Mengele revele um padrão: ele chegou à  América do Sul através da Argentina, obteve documentos argentinos (primeiro sob um nome falso e depois sob o nome de José Mengele), logo foi para o Paraguai (tudo indica) e sabemos acerca de sua morte no Brasil. É indubitável que assim como ocorreu com ele, muitos outros ganharam igual cobertura.

É possível que exista hoje uma organização similar a Odessa, (tinha 750 empresas em vários países, sendo 98 na Argentina, para dar emprego e financiar fugas e proteção aos nazistas do III Reich), que funcionaria como uma poderosa e invisível rede de recrutamento, treinamento e sustento de milhares de terroristas?

- Existem, sem dúvida, redes internacionais de terrorismo. O melhor exemplo é Al-Qaeda. E é evidente que as organizações terroristas têm contatos para recrutar pessoas, obter recursos e realizar atividades de inteligência. O desafio das sociedades democráticas é combater o terrorismo dentro dos princípios do Estado de Direito.

MISSÃO E DESTINO

Sobrevivente do Holocausto, Simon Wiesenthal dedicou seis décadas de sua vida  a uma missão: encontrar os nazistas que comandaram ou participaram dos massacres contra as minorias, principalmente judeus, para entregá-los à justiça. Durante a II Guerra Mundial, Wiesenthal - à época com 30 anos -  passou por doze campos de concentração e chegou a tentar o suicídio, após uma fuga fracassada. Toda a sua família, de 89 pessoas, pereceu nos fornos crematórios e nos campos de confinamento.

Em 1947 fundou, em Viena, um Centro de Documentação com o objetivo de catalogar sobreviventes e criminosos, em um trabalho meticuloso de detetive e promotor, que levou mais de mil nazistas aos tribunais. Entre eles, Franz Stangl, o comandante do campo de Treblinka, na Polônia, onde 40 mil pessoas foram mortas, e Adolf Eichmann, responsável pela logística de extermínio em massa, aplicada pela máquina nazista nos países ocupados. Ambos foram encontrados na América do Sul: Stangl, em São Paulo, e Eichmann, na Argentina.

Nascido em 1908, onde hoje é a Ucrânia, Wiesenthal morreu em 2005, aos 96 anos, em Viena. Sua maior decepção foi não ter capturado o médico Josef Mengele, conhecido como o “Anjo da Morte”, por suas horrendas experiências feitas em seres humanos no campo de Auschwitz (Polônia). Mengele foi localizado no Brasil depois de morto, após a exumação do corpo.

 

(14 de julho/2007)
CooJornal no 537


Sheila Sacks é jornalista
trabalha, há 25 anos, na Assessoria de Imprensa da Empresa de Obras Públicas do Estado do Rio de Janeiro (Emop). Também escreve para o NOSSO JORNAL-RIO, uma publicação voltada para a comunidade judaica.
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