31/03/2007
Ano 10 - Número 522


Sheila Sacks
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Sheila Sacks



NOSTRADAMUS E A FONTE OCULTA


 


O maior fenômeno midiático de todos os tempos tem nome e sobrenome: Michel de Nostradame, codinome Nostradamus. Jogando por terra conceitos básicos da boa comunicação, como a clareza e a objetividade, o mago é o exemplo mais radical de que a desordem redacional dá ibope. 

Valendo-se de uma misteriosa e complexa fonte de informações – a mística judaica – Nostradamus fez seu pé-de-meia junto aos poderosos e, de quebra, ganhou uma cadeira cativa na galeria dos notáveis da História. 


Ídolo na Internet

Já virou rotina na mídia: a cada desastre natural, ato de terrorismo ou situação anormal no planeta, uma multidão de curiosos e pseudo-estudiosos surgem do nada para garimpar o  seu minuto de fama, divulgando rocambolescas teorias com base em obscuros versos de um médico-astrólogo que viveu na Renascença. Nascido em 1503, na região da Provença, no sul da França, Michel de Nostradame transformou-se no maior fenômeno literário e cibernético de todos os tempos. Segundo os pesquisadores de plantão, depois do 11 de setembro (2001) Nostradamus ganhou status de ídolo, sendo uma das palavras mais acessadas na Internet. Também estão contabilizados milhares de livros, cujos autores recontam e interpretam, a seu bel-prazer, os textos do vidente, muitos com a ressalva de que dedicaram 30 a 40 anos de suas vidas em pesquisas full-time. Talvez esta seja uma das razões para que muitos afirmem que As Profecias seja o livro mais editado de todos os tempos, depois da Bíblia. Também conhecida como Centúrias, a obra é uma seqüência de 942 quadras (versos em quatro linhas), agrupadas em conjuntos de 100. O primeiro fascículo foi publicado em 1555, e os demais, dois e três anos depois. Em 1568, dois anos após a morte do vidente, apareceu a versão que chegou até os nossos dias, com a inclusão de mais três centúrias.


Influência dos avós

Em seu livro “The Jewish Doctor: A Narrative History”, o norte-americano Michael Nevins conta que ambos os avós de Nostradamus eram médicos e o influenciaram em seus estudos de matemática, astrologia, latim, grego e hebraico. “Eles participaram ativamente da educação do neto, introduzindo-o na medicina, no trato com as ervas naturais e, principalmente, no secreto estudo da Cabala e da alquimia”. Segundo o autor, que também é médico, quando o rei da França, Luis XII, conhecido como o Pai do Povo (reinou de 1498 a 1515), obrigou os judeus a se converterem, ameaçando com o confisco de bens e a pena de morte, a família de Nostradamus obedeceu, mas secretamente continuou a professar a religião judaica. Formado pela Universidade de Montpellier, Nostradamus começou a praticar medicina a partir de 1525. Ele viajava bastante, exercendo a sua função de médico, ainda que praticasse uma medicina pouco ortodoxa, com o uso de ervas e plantas. Isso durante o dia, porque quando chegava a noite, ele reunia-se à rede secreta de alquimistas e cabalistas em seus estudos, principalmente no campo da astrologia. Nevins relata que Nostradamus, em 1537, teve a Inquisição em seu calcanhar e durante seis anos ele vagou pela Europa, sendo os seus passos, durante esta época, pouco conhecidos. Com a publicação de suas primeiras profecias, ele conquista a fama e torna-se o favorito da rainha Catarina de Médicis (1519-1589).

 
Estudioso da Cabala

Para o francês Robert Benazra, fundador do Cahiers Kabbalah (revista de estudos sobre a mística Judaica, na década de 1980) e pesquisador do Répertoire Chronologique Nostradamique - um compêndio de 700 páginas com documentos e publicações sobre Nostradamus - o estilo literário das profecias lembra os textos do Talmud (comentários rabínicos sobre a Torá/Velho Testamento), “sem uma ordem cronológica definida, saltando freqüentemente de um tema para outro, tendo por base a associação de idéias  e apoiados em um jogo de palavras somente compreensível para os iniciados”. Benazra destaca que o astrólogo, em carta ao seu filho César, dá a entender que é um estudioso da Cabala, ao afirmar que inúmeras obras escondidas ao longo do tempo lhe foram reveladas. Os livros seriam o Bahir, o Zohar e o Yetsirah (que fala da criação do mundo), documentos fundamentais para o estudo da Cabala. Os trabalhos já seriam conhecidos na Provença, nos séculos XIII e XIV, trazidos pelos ancestrais judeus de Nostradamus. Em outro trecho, o vidente diz textualmente que “as revelações são recebidas em minhas continuadas vigílias noturnas”, em alusão aos estudos da Cabala que devem ser feitos, preferencialmente, entre a meia-noite e a madrugada. Ele também escreve que o “Deus imortal faz revelações aos profetas através de anjos bons e em meio ao fogo”, lembrando Moisés no deserto e a sarça ardente (Êxodo3.2). Já na “Carta a Henrique II, Rei da França” (marido de Catarina de Médicis, que reinou de 1547 a 1559), Nostradamus faz um registro da sua hereditariedade ao assinalar o instinto natural recebido de seus antepassados.
 

Religião e Tradição

O caráter conservador presente nos escritos e nas observações da quase totalidade dos místicos é apontado pelo renomado historiador e teólogo alemão, Gershom  Scholem (1897-1982), como uma característica resultante da própria educação recebida pelo aprendiz e da influência religiosa do seu guia espiritual, que vai inspirá-lo e o conduzir pela vida afora (no caso de Nostradamus, os seus avós). Na obra “A Cabala e o seu Simbolismo”, Scholem observa que o místico sempre carrega dentro de si uma herança antiga, permeada de elementos tradicionais, e com símbolos de seu próprio mundo. “Por que um místico cristão sempre tem visões cristãs, e não as de um budista?”, dispara o autor, que lembra ainda que a palavra Cabala significa tradição recebida. Outro dado importante é que Nostradamus nasceu no berço europeu da Cabala, onde por volta de 1180, apareceria o surpreendente documento cabalista conhecido como Sefer Bahir (Livro Luminoso), escrito numa mistura de hebraico e aramaico. Segundo Scholem, esse pequeno livro de 30 a 40 páginas, é um texto difícil, cheio de ditos e teses enigmáticas, que faz afirmações ambíguas acerca do problema do mal, a partir de um dos versículos do Velho Testamento: “Do Norte irromperá o mal sobre todos os habitantes da terra” (Jeremias1:14– Neviim/Profetas). Coincidentemente, Nostradamus parece ter incorporado este conceito, porque em suas Centúrias o imprevisível sempre vem do norte: “Aparecerá, no céu no norte, um grande cometa” (Cen.II-43) e “De repente ergue-se no céu uma enorme chama, quando os do Norte fizerem a sua experiência” (Cen.VI-97). Scholem também chama a atenção para uma das características mais marcantes entre os primeiros cabalistas que surgiram em Languedoc, na Provença: a sua postura diante do conceito do mal e do demoníaco. Enquanto os filósofos judeus consideravam um problema menor, para os cabalistas o mal sempre foi um assunto dos mais sensíveis e instigantes.

 

7 Ciclos

Outro livro que exerceu grande influência no misticismo judaico europeu e nos estudiosos da Cabala foi o Sefer há-Temuná (Livro da Configuração ou da Imagem), que surgiu na Catalunha, por volta de 1250. Entre outros temas o texto fala de 7 ciclos cósmicos que durariam, cada um, sete mil anos, ao fim dos quais se somariam mais mil anos, formando o 50º milênio do Jubileu (Santificareis o 50º ano... Levítico 25.10). Cada ciclo seria governado por um atributo diferente de Deus, resultando em períodos mais austeros e outros menos severos.

Observa-se, ainda, que um dos maiores mestres da astrologia na Europa Medieval, o rabino espanhol Abraham ben Meir Ibn Ezra (1089-1167), ensinava que o sistema astrológico de tempo se estruturava sobre 7 ciclos ou planetas (Saturno, Vênus, Júpiter, Mercúrio, Marte, a Lua e o Sol). Cada um influenciaria  o mundo por um período de 354 anos e 4 meses, ao fim dos quais os ciclos se repetiriam. Médico e erudito, ele viveu na Provença quatro séculos antes do nascimento de Nostradamus, sendo o autor de cerca de 200 livros sobre os mais variados assuntos - religião, filosofia, astronomia, gramática hebraica e matemática -, nove deles voltados à astrologia (o mais conhecido é o Sefer há-Olam – O Livro do Mundo).

A freqüência do número 7 nas páginas do Velho Testamento, número associado à própria Criação e a símbolos, eventos e normas básicas do judaísmo, também pode ser observada na obra de Nostradamus. Ele registra o número 7 em várias quadras de suas Centúrias e Presságios: O cometa brilhará por 7 dias... (Cen.II-41); O ano de 1999 e 7 meses... (Cen. X-72); Outro que não o Papa ocupará o trono de São Pedro por 7 meses...(Cen.VIII-93); Um outro (poder) restabelecerá a monarquia até o sétimo milênio... (Cen.I-48); Por semearem a morte, 7 países da Europa serão mortalmente feridos... (Pr. 40); A grande cidade de 7 colunas... (Cen.I-69). Mas, é na quadra X-74, uma das mais conhecidas e citadas, que se verifica uma clara transposição da mística judaica quanto ao ciclo cósmico, ao ano do Jubileu e a era messiânica (com a ressurreição dos mortos, presente na oração judaica diária da Amidá/18 bênçãos). Os versos da quadra dizem: “No ano do grande sétimo número completado, aparecerá nesta ocasião os jogos da hecatombe, não longe da idade do grande milênio, quando os mortos sairão de suas tumbas”.


A Origem

O rabino Chaim Zukerwar – nascido no Uruguai e que estudou a Cabala em seminários rabínicos  em Jerusalém – lembra que o número 7 costuma indicar os ciclos e os processos que abrangem a dobradinha tempo e espaço, aparecendo nos textos judaicos de tradição oral e escrita. Em sua obra “As 3 dimensões da Kabalá”, ele dá alguns exemplos: “Em seis dias Deus criou os céus e a terra, e no sétimo dia descansou (Shabat/sábado); Sete dias formam uma semana; durante 7 dias é celebrada a festa de Pessach (Páscoa judaica/libertação dos judeus no Egito); 7 semanas depois é Shavuot (Outorga da Lei-Torá); Sete meses depois de Pessach é Sucot (Festa das Cabanas)” etc. Outro dado interessante é que o ano novo judaico começa no sétimo mês bíblico (1º de Tishrei/Libra), dia de Rosh Hashaná (aniversário da criação do mundo) e termina 354 dias depois, em 29 de Elul/Virgem.


Calendário hebraico

Além dos números, as datas incluídas em seus versos também instigam e alimentam o mito Nostradamus. Benazra assinala que na carta ao “Rei da França”, em 1558, Nostradamus é muito preciso quando escreve que as suas previsões vão de 14 de março de 1557 até o início do 7º milênio, em... 3797 (?), cobrindo um período de 2240 anos. Para o pesquisador, o vidente utilizou-se do calendário hebraico em seu enigma cronológico: o ano de 1557 corresponderia ao ano hebreu de 5317; o ano de 2001 equivaleria ao 5761; e 2240 ao ano 6000 do calendário judaico, ou seja, às portas do 7º milênio. Logo, as datas de “julho de 1999” ou “11 de setembro de 2001”, que provocaram acaloradas discussões e controvérsias, estariam inseridas em uma contagem de tempo alheia ao período da chamada Era Comum, já que Nostradamus, como cabalista, não contabilizaria o fim dos dias pelo Novo Testamento.

Uma curiosidade: a médium mais famosa da Inglaterra, Doris Collins, de 89 anos, conhecida por reivindicar para si poderes de clarividência e de cura, declarou que conseguiu manter contato com Nostradamus uma única vez. Ele lhe teria dito que,  embora tivesse mudado de religião, isso não modificaria o fato real de que nascera judeu.  


Sorte e sina

No livro “Universo Kabbalístico”, o inglês Z’ev ben Shimon Halevi – escritor e professor de Cabala -  afirma que a astrologia sempre esteve dentro da Cabala judaica, apesar de muitos negarem o fato. “Até no Talmud há muita discussão sobre a influência do macrocosmo sobre o homem: por exemplo, um rabino chamado Hanina argumentava que os planetas determinavam a sina de uma pessoa, e um outro rabino, conhecido como Rava, declarava que a sorte de um indivíduo não dependeria de merecimento, mas do seu planeta regente”. Halevi assinala que nesses debates com rabinos contrários à idéia do poder atuante dos astros, ninguém negava a validade das influências celestiais, apenas o seu “governo” sobre Israel. “A palavra mazalot, que significa zodíaco, tem a mesma raiz de mazal (fortuna), e até hoje os judeus usam a expressão mazal tov (boa sorte) nas festas e celebrações, sem se darem conta de que a palavra trata de influências astrológicas”,  explica o professor. E mais: o número 77 é o valor da palavra hebraica mazal!


Retorno a Israel
 

Outro tema abordado por Nostradamaus em suas Centúrias diz respeito ao retorno do povo judeu à terra de seus antepassados. O pesquisador Robert Benazra lembra que na quadra III-97 o astrólogo escreveu: “A nova lei ocupará a nova terra, em direção a Síria, Judéia e Palestina, o grande império bárbaro desabará...”. O conteúdo dos versos está em sintonia com as profecias de Zacarias (Eu farei chegar o meu povo e ele permanecerá no centro de Jerusalém – VIII.8) e de Isaías (Nesse dia os sobreviventes de Israel irão voltar- X.20; O Eterno juntará os exilados de Israel e reunirá os dispersos de Judá, dos quatro cantos do mundo- XI.12).

Estudioso da mística judaica, Nostradamus tinha conhecimento de que, segundo o Talmud, a era dos “Verdadeiros Profetas” tinha chegado ao fim na primeira geração do Segundo Templo (515 antes da Era Comum). Mas, provavelmente, também teria lido “O  Guia dos Perplexos”, escrito em 1190 por Maimônides. Na obra, o grande médico e filósofo judeu, nascido na Espanha, expõe os Treze Princípios da Fé e fala sobre a crença de que “Deus faz os seres humanos profetizarem”. Porém, o espírito da verdadeira profecia só retornaria ao povo judeu um pouco antes da Era Messiânica, quando da vivificação dos mortos e da total revelação da Torá (o conteúdo dos espaços em branco, entre as palavras, seriam dados a conhecer). Até lá, os Sábios levariam adiante a Tradição e, apesar da inspiração, conhecimento,  visões e previsões que poderiam ser dotados, a percepção que se formou foi a de que a cada geração que se sucedia, o nível espiritual tornava-se inferior à anterior, resultando em uma frase muito usada pelos mestres aos seus discípulos: “Se nossos predecessores foram como anjos, nós somos apenas homens”.

Investindo nessa máxima, Nostradamus utilizou com sucesso a sua ancestralidade e os conhecimentos do hebraico e da Cabala - ainda uma fonte oculta e incompreensível para a maioria das pessoas – para ditar as suas herméticas previsões. O efeito paradoxal e confuso de seus versos funcionou a seu favor e a sua obra tem se mostrado um campo aberto a exercícios de adivinhações e a teorias relacionadas com o fim do mundo.




(31 de março/2007)
CooJornal no 522


Sheila Sacks é jornalista
Rio de Janeiro, RJ
ssacks@oi.com.br