24/02/2007
Ano 10 - Número 517


Sheila Sacks
ARQUIVO



Sheila Sacks
 


The Spirit
e outras histórias
 


Os aficionados de histórias em quadrinhos que se preparem: em 2007, o justiceiro mascarado The Spirit, dos anos 40, deve voltar à ativa, desta vez nas telas dos cinemas. O genial escritor e desenhista Frank Miller, diretor do cultuado Sin City (Cidade do Pecado), e a turma da produção do filme Batman Begins já embarcaram rumo à lendária Central City, a cidade dos sonhos, desilusões, dramas, crimes e situações bizarras, engendrada pela imaginação do mais respeitado e premiado cartunista de todos os tempos: o norte-americano de origem judaica, Will Eisner. Nesse universo noir de jogos de sombras, ângulos insólitos e planos incomuns, vive o investigador da polícia Denny Colt, dado como morto e que faz do combate ao crime a sua bandeira de luta. De terno, gravata, chapéu, luvas e máscara, ele se transforma em The Spirit, o mocinho diferente, mais humano e contraditório, sem superpoderes, com dúvidas e sujeito a falhas.

À parte as histórias policiais nada convencionais, The Spirit inovou os comics utilizando-se de inventivos recursos narrativos, de enquadramentos inesperados de imagens, e lançando mão de primeiros planos para destacar um detalhe. Essa nova linguagem gráfica, quase cinematográfica, introduzida por Eisner, angariou um exército de 5 milhões de ávidos leitores semanais, somente nos Estados Unidos. As  tirinhas, iniciadas em 1940, foram publicadas até 1952, mas seus enredos e ilustrações, utilizando narrativas paralelas e desenhos expressionistas, romperam com as técnicas tradicionais, marcando um novo capítulo no desenvolvimento da arte do cartoon.

Considerado por especialistas do gênero o mestre das histórias em quadrinhos de todos os tempos, William Erwin Eisner nasceu em 1917, no bairro nova-iorquino do Brooklin. Era filho de imigrantes judeus muito pobres, e quando criança trabalhava vendendo jornais nas ruas para completar a renda familiar. Foi esse o seu primeiro contato com as histórias em quadrinhos, cujas ilustrações o encantavam e com as quais desenvolveu um profundo amor pelo desenho gráfico. Já aos oito anos resolveu se dedicar ao desenho, apesar da oposição da mãe. Além do herói Spirit, Eisner também foi o criador de Sheena, a Rainha da Selva, que virou série de TV (1955) e filme (1984).

Mas, apesar do enorme sucesso com The Spirit, Will Eisner dá uma guinada em sua vida e em sua arte, surpreendendo fãs e seguidores. Depois de realizar trabalhos de propaganda e de publicidade, e também de adaptação para as HQs de obras clássicas, como Don Quixote e Moby Dick, ele edita, em 1978, uma publicação ilustrada, com temas sérios e para leitores adultos, classificada pelo próprio autor de graphic novel (histórias longas, impressas em papel especial e publicadas em formato de álbum). A novidade provoca uma revolução no mundo dos comics. O trabalho Contrato Com Deus e Outras Histórias mostra a vida de pessoas comuns e fala dos dramas do dia-a-dia de sua Nova York natal. Sem limitação de páginas, com temática e desenho livres de qualquer forma, os romances gráficos se tornam populares e conquistam seguidores entusiastas. As aventuras protagonizadas por heróis são deixadas para trás e os habitantes anônimos da Big Apple – muitos deles imigrantes e judeus como os pais de Eisner – assumem os papéis principais no pincel do artista. Combinando ficção com histórias reais, Eisner cria  relatos intensos e dramáticos, com destaque para a temática judaica. Os anos passados nos bairros do Brooklin e do Bronx são retratados em uma série de trabalhos que incluem O Sonhador, O Edifício e No Coração da Tempestade. Este último, mostra a sua infância e adolescência. Segundo Eisner, a linha central dessa graphic novel é o racismo. “O livro se inicia no trem, quando sou convocado para a guerra. Pela janela visualizo cenas que me lembram as histórias pelas quais eu passei, dentre elas minha primeira experiência com o racismo.”

Em 1983, para comemorar os 15 anos da  publicação de Contrato com Deus, é lançada uma edição especial da obra, em ídiche. No Brasil, o universo de Eisner ganha a cena teatral, com as peças New York, em Curitiba (1990), Pessoas Invisíveis, no Rio (2002) e Avenida Dropsie, em São Paulo (2005). Ainda no Brasil, a produtora Marisa Furtado realiza um documentário sobre Eisner (1999), o primeiro sobre a carreira do artista.

Suas duas últimas obras, Fagin,o Judeu e The Plot abordam temas espinhosos. A primeira é uma revisão histórica de uma figura mal retratada por Charles Dickens, em seu livro Oliver Twist. A visão estereotipada do personagem serviu para disseminar o preconceito entre os leitores do autor inglês e Eisner apresenta a sua visão sobre o assunto. A segunda trata da verdadeira origem de um documento forjado por autoridades russas, em 1903, conhecido como Os Protocolos dos Sábios de Sião. A farsa foi descoberta em 1921 e revelou que o texto dos Protocolos foi extraído de uma sátira política francesa escrita por Maurice Joly, em 1864, intitulada O Diálogo no Inferno. O texto descrevia uma fictícia discussão de Maquiavel e Montesquieu para um plano de conquista por Napoleão III, cujo nome foi substituído por “os judeus”. 

The Plot foi lançado nos Estados Unidos em maio de 2005, alguns meses depois do falecimento de Eisner. No Brasil, a editora paulista Companhia das Letras publicou a versão brasileira (O Complô), em novembro de 2006. Em entrevista ao New York Times, em 2004, Eisner falou deste trabalho: “Acabo de concluir e estou editando uma novela gráfica de caráter polêmico. Trata-se da verdadeira história da origem de uma das maiores e mais infames fraudes do mundo, os Protocolos de Sião”.  Justificando seu interesse pelo tema, Eisner  contou que buscou no passado uma forma de enfocar o anti-semitismo que continua sendo uma questão atual. Eu estava na Internet e descobri uma página promovendo “os Protocolos” para leitores  do Oriente Médio. Fiquei chocado em descobrir que muita gente ainda acredita que a história é real e fiquei perturbado quando vi a quantidade de sites que divulgam essas mentiras para os muçulmanos. Concluí que algo precisava ser feito.

Will Eisner tinha 87 anos quando faleceu em 3 de janeiro de 2005.  Pioneiro dos comics de adultos e criador do termo arte seqüencial que deu novo status ao gênero, ele deixou seguidores respeitados, como Frank Miller (Batman, o Cavaleiro das Trevas e Sin City ) e Alan Moore (Watchmen). Considerado o Leonardo da Vinci dos quadrinhos pela revista Civilization, editada pelo Congresso americano, o artista emprestou o seu nome para o mais importante prêmio de quadrinhos do mundo – o Eisner Award . O jornal The Washington Post, ao descrever a trajetória do cartunista, sublinhou que Eisner fez da luta contra a intolerância uma forma de arte.  Aqui no Brasil, Maurício de Souza, criador dos personagens Mônica e Cebolinha, lamentou a perda do amigo, que esteve várias vezes no Brasil : Foi como se eu tivesse perdido outro pai. Ele era o meu ídolo, o meu guru.

A genialidade da arte de Eisner – que jamais excluiu a sua identidade judaica e que não a manteve restrita às fronteiras tribais dos fãs dos comics - também foi devidamente reconhecida pela prestigiada Nacional Foundation for Jewish Culture, instituição americana fundada em 1960 para promover e preservar a cultura judaica. Em 2002, a entidade outorgou ao artista o prêmio máximo pelo conjunto de sua obra.




(24 de fevereiro/2007)
CooJornal no 517


Sheila Sacks é jornalista
Rio de Janeiro, RJ
ssacks@oi.com.br