16/03/2021
01/07/2021
Ano 24
Número 1.228




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RONALDO WERNECK



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Ronaldo Werneck




1º de abril na tropicália

Ronaldo Werneck - CooJornal


Fui preso pela primeira vez na noite de 1º de abril de 1964. Salvador, Bahia. Havia passado a Semana Santa em Cataguases e chegara naquela manhã na terra de Gil & Caetano (que ainda não existiam como “entidades baianas” e a quem conheceria pessoalmente algum tempo depois). Estava trabalhando há apenas dois meses no Banco do Brasil e morava no Campo Grande, ali perto do Teatro Castro Alves, no imenso apartamento do meu amigo Alaor Bagno & família.

Na véspera, quando o ônibus passou por Governador Valadares, senti o prenúncio de alguma coisa não muito boa, que parecia acontecer na cidade, em Minas, quem sabe no país. Estampidos, correrias, boatos sobre a morte de um líder camponês: “Tão falando que balearam o Chico Julião”. Não dormi durante o resto da viagem. Quando fui pra Cataguases, na antevéspera da Semana Santa, meu amigo Alberto Silva, já na época um dos melhores críticos de cinema da Bahia, levou-me à rodoviária para combinarmos a distribuição de uns versos que eu faria para serem divulgados entre as ligas camponesas – qualquer coisa no gênero dos poemas que Ferreira Gullar, Vinicius de Moraes, Affonso Romano de Sant Anna, José Carlos Capinan & outros poetas estavam “cometendo” para a Civilização Brasileira, no Rio, dentro da série Violão de Rua.

Éramos jovens e acreditávamos piamente que a dialética & a poesia podiam virar o mundo em “festa, trabalho e pão” como diria mais tarde a letra de Capinan para a música de Gilberto Gil, feita para o filme Viramundo, de Geraldo Sarno. Essas coisas, vamos dizer, “saudáveis” que passam pela cabeça de qualquer poeta que se preze quando se tem vinte anos e se vive num mundo extremamente injusto. Pois é, parece coisa do passado, né?

Nem o Banco nem o Brasil abriram naquele primeiro de abril (vale a rima). Liguei pra redação do Jornal da Bahia, mas não encontrei o Alberto. Alaor, de ouvido no rádio, me diz que a situação está “feia” no sul do país. Feriado compulsório, sem nada a fazer, embora preocupado, desci para o Porto da Barra. Passei a tarde inteira e o início da noite na AABB, onde iria assumir uma das diretorias sociais e estava articulando a fundação de um cine-clube. A tarde não era em Itapoã, mas tinha direito a piscina, sinuca & uísque com água de coco, pois “a burguesia também tem seus encantos”, como já dizia o jovem filósofo baiano Emetério de Jacobina.

Lá pelas dez horas da noite, saímos do clube – eu e meu colega Manuel dos Santos, que não era o Mané Garrincha, mas um carioca do Méier, excelente jogador do time de futebol de salão da AABB, onde modestamente eu atuava como atento guardião de suas cores, aliás azul & branco, como as do meu “Operal, eterno campeão local”. Pois é, eu também já fui goal-keeper, quer dizer, uma verdadeira “caixinha de surpresas”. Não havia vivalma (eu disse “vivalma”? Meu Deus, que coisa mais antiga!). Subimos a pé a ladeira da Barra, eu levando uma garrafa de uísque debaixo do sovaco, pois na saída me lembrei que o precioso líquido estava em falta chez Alaor.

Quando estávamos adentrando a praça do Campo Grande, apenas a alguns metros do nosso edifício, ouvimos o ruído de um veículo vindo na contramão pela Avenida Sete. Era uma ambulância que freou “adjunto” a nós, como dizem os baianos. Dela saltaram três rapazes fardados, metralhadoras à mão. Fomos jogados contra o muro: “Documentos! Mãos pra cima! Têm autorização?” Eu não tinha documentos nem autorização (que autorização?). Só então soube que o governador havia baixado uma ordem para toque de recolher a partir de nove da noite. Pra toda população.

Fomos lançados dentro da viatura, digo, da ambulância, junto com um dos soldados, sentado junto a nós, nervoso, cara de garoto servindo exército, arma na mão, devidamente engatilhada. Temíamos que o fuzil disparasse a cada solavanco que o veículo, perdão, a viatura, perdão, a ambulância (Mamãe!) dava a cada buraco (nossa!), chispando no meio da noite por sobre as pedras ancestrais das ruelas soteropolitanas – como os baianos gostam de chamar a Bahia de Todos os Santos, inclusive meu São Salvador, por quem clamava & implorava veemente o poetinha. Mamãe nunca soube, muito menos o padre Solindo, como o jovem Ronaldo rezou naquela noite!

A ambulância zunia na noite, recolhendo tudo que encontrava: bêbados, putas, retardatários de várias estirpes, inclusive um executivo que voltava de um possível serão: no escritório, ou na casa da amante, nunca soubemos. Sua mulher, a própria, estava jogando a chave da casa, que ele esquecera, quando nosso improvisado camburão deu seu stop tradicional, com direito a ranger de freios, e nosso dileto soldadinho saltou, arma em punho, berrando o jargão de praxe: “Tem autorização? Ah, não? Então, entra, seu puto!”.

Fomos jogados pra fora da ambulância na Praça da Sé, onde já se encontravam todos os noctâmbulos possíveis & imaginários: “Quem tem documentos, pra direita! Os outros, pra esquerda”. Eu estava de bermuda, nada no bolso ou nas mãos, apenas com uma inacreditável garrafa de uísque equilibrando-se em meu sovaco (não sei por que cargas d’água não me tomaram, melhor: não “a tomaram”). Resolvi jogar com a sorte e optei pela direita, pela primeira e, acredito, última vez na vida. Manoel estava devidamente documentado, e eu não queria me separar dele. Na verdade, estava cagando de medo. Foi minha sorte: quem estava sem os documentos foi pro Dops e levou porrada a noite inteira (imaginem se nossos bravos soldados soubessem que o poetinha projetava fazer versos pras ligas camponesas!...).

Nós, “cidadãos de respeito, documentados”, fomos conduzido pro quartel de Barbados, mais exatamente pra capela do quartel, onde, vamos dizer, “pernoitamos”. Grande hospitalidade, a do exército baiano: deixaram o poeta com seu uísque e ainda lhe deram a oportunidade de travar conhecimento com uma das “365 belíssimas igrejas da capital baiana”, como mamãe dizia. Bebemos a noite inteira, inclusive nosso executivo que, entre uma & outra talagada, reclamava, reclamava, reclamava da grande sacanagem de ser preso exatamente na hora do “joga a chave, meu amor”.

Fomos soltos na manhã seguinte. Estava de ressaca e extremamente humilhado. Nunca mais fui o mesmo. A partir dali, sucederam-se as barbaridades engendradas naquele primeiro de abril que os milicos insistiam em chamar de 31 de março (com medo da galhofa provocada pelo dia da mentira) e insistiam ainda em chamar de “revolução”, quando no fundo não passava de um golpe de fundo de quintal, sujo & traiçoeiro, mais um golpezinho ao sul do Equador, de fazer inveja a qualquer republiqueta latino-americana. Só não esperávamos que durasse tanto. Nem que doesse tanto. Nem que nos envelhece & envilecesse tanto.

Hoje, neste quinze de novembro histórico – cem anos de República, vinte e nove anos após a última eleição direta, quando votei pela primeira vez para presidente (meu Deus, como o poetinha tá velho!) – é com espanto, temor e mesmo com certo nojo que vejo alguns segmentos do povo brasileiro carregando a bandeira televisiva dos fantoches embonecados produzidos pelos mesmos ditadores que massacraram o país ao longo dos últimos vinte e cinco anos. Acho que é tempo de refletirmos, de pensarmos sobre até que ponto este quinze de novembro pode se transformar num novo primeiro de abril. Pois é, como diria meu caro poeta T.S. Eliot: “Abril is the cruellest month”. Isso aí.

Ah sim, a segunda prisão foi em janeiro de 1972, em pleno terror dos anos Médici. Eu, minha ex-mulher Adriana Monteiro (na época, grávida da Ulla), o roteirista e cineasta Tairone Feitosa e a hoje bem-sucedida empresária Ynez Mynssen fomos “convidados” a conhecer in loco os porões do DOI-Codi (como dói!) na Barão de Mesquita, no Rio, onde já se encontravam meus amigos Carlos Sérgio Bittencourt e a futura jornalista Dulce Caldeira. Fomos salvos graças a gestões de Rodrigo Farias Lima (hoje empresário teatral no Rio, e que na época morava conosco numa casa de vila na Rua Silveira Martins) e de Leila Diniz, a própria. Musa de Ipanema e – por essa & outras – eterna musa do coração do poetinha.

Voz Ativa nº 1
Cataguases, nov/89


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Ronaldo Werneck,
poeta e escritor
MG
https://ronaldowerneck.blogspot.com/



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