16/11/2020
Ano 24 - Número 1.197




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RONALDO WERNECK



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Ronaldo Werneck



CHILE CONTRA SUPER-HERÓIS

 

Ronaldo Werneck - CooJornal

“E corremos para lugar nenhum/ los carabiñeros nos calcanhares/ outubro ou nada só fogo e fumaça/ (...) asesinos asesinos ya bradam/ berram los compañeros en las calles/ brados ya ressoam na cordillera/ ya octubre y sangre em Santiago”. Esses são alguns versos do poema que escrevi em Santiago do Chile em outubro de 2019, quando das “manifestaciones” que sacudiram o país. Os chilenos tomaram as ruas manifestando-se ou combatendo por redução das usurpações e das opressões econômicas a que estavam submetidos. Para a pacificação, o governo Sebastian Piñera propunha um plebiscito para abril de 2020 sobre uma nova Constituinte.

O plebiscito só veio agora, no último 25 de outubro, um ano depois das manifestações de 2019. Um dia histórico. Os chilenos se declararam emocionados ao participar da votação que consideraram a mais importante desde 1988. Foi mesmo emocionante ver uma foto dos eleitores no Estádio Nacional de Santiago – que foi o centro de detenção, torturas e assassinatos depois do golpe militar de 1973, que matou o presidente Salvador Allende e levou ao poder o General Pinochet, um dos mais sanguinários ditadores de que se tem notícia.

SUPER-HOMEM & PATO DONALD

Lembrei-me então de um livro que resenhei quando de seu lançamento brasileiro em 1978, “Super-Homem e seus amigos do peito”, de Ariel Dorfman (escritor argentino, naturalizado chileno) e Manuel Jofré (escritor chileno), onde os dois ensaístas examinam as histórias em quadrinhos sob a óptica dos aparelhos ideológicos de estado. Em 1971, junto com o belga Armand Matellard, Ariel Dorfman já havia lançado no Chile “Para leer al Pato Donald” (”Para ler o Pato Donald, na versão brasileira publicada pela Paz e Terra em 1977). Ali eles examinavam como os personagens de Disney reproduziam a lógica capitalista, onde o dinheiro e a acumulação tinham papel predominante nas relações "interpessoais" entre os personagens, e como as histórias promoviam o imperialismo americano, ao caracterizar os povos estrangeiros como atrasados, tribalizados, ingênuos e/ou espertalhões.

No início dos anos 1970, o Chile viveu uma experiência única na América Latina, que não pode ser comparada nem mesmo à Cuba de Castro. Pela primeira vez, o socialismo chegava ao poder através de eleições diretas.

A curta trajetória de Allende no poder (1970/1973) gerou entre os intelectuais chilenos uma série de estudos buscando trazer à tona os graves problemas – e, de certa forma, direcionar as novas veredas que poderiam ser abertas para imprimir mais humanidade aos destinos da América Latina.

Os chilenos perceberam de imediato a força ideológica dos meios de comunicação, e vários ensaios foram feitos sobre o assunto. Um deles foi o livro “Superman y sus amigos del alma”, escrito em 1972 por Dorfman e Jofré – e publicado em Buenos Aires, em 1974 – onde os autores procuram analisar as “tramoias ideológicas” que se encontram por trás da aparência “naif”, da suposta ingenuidade dos quadrinhos.

SUPER-HOMEM E O SOLDADO

“Santiago do Chile, 15 de setembro de 1973, quatro dias após a queda e morte de Allende: de um caminhão da FACH-Força Aérea do Chile descem soldados armados de metralhadoras” – escreve Dorfman no prólogo do livro. “Eles cercam a tipografia Roda e começam a arrebentar tudo o que veem pela frente: prelos, lâmpadas, fluorescentes, aparelhos de reprodução. Enquanto a tropa entretinha-se com esse jogo, o tenente que comandava a ação entretinha-se sozinho. Prendia, sob ameaça de fuzilá-los, os diversos manuscritos que correspondiam aos volumes que se preparavam nessa oficina tipográfica, sendo que alguns deles estavam a ponto de serem publicados.

“Entre os títulos que já atingiam sua etapa final de produção encontravam-se cinco mil exemplares da primeira edição de “Documentos Secretos sobre a Vida Íntima de Super-Homem e seus companheiros d´Alma”, título inicial de “Superman y sus amigos del alma”, que seria lançado no ano seguinte em Buenos Aires”.

A ideia era mostrar dois aspectos dos produtos culturais dos meios de comunicação de massa: uma análise teórica (Dorfman) dos super-heróis, partindo do Zorro como figura extrema e exemplar, e os resultados práticos de uma experiência de transformação deste tipo de historieta durante o governo da Unidade Popular na Editora Quimantú (Jofré). Tudo isso escrito numa linguagem de comics. Como eles não conseguiram resgatar os manuscritos originais, a edição publicada baseou-se nos rascunhos que a “dupla dinâmica” conseguiu salvar e que fez passar através da Cordilheira dos Andes por uma passagem secreta.

Dorfman acrescenta em seu prefácio: “(...) É possível que eu não tenha percebido até que ponto o fascismo já esteja semeado nas estruturas essenciais do capitalismo, sempre pronto a fazer-se presente ao menor sinal de ameaça de tomada do poder por parte da classe operária; ao menor sinal de que a classe dominante se mostre incapaz de exercer sua hegemonia através de suas próprias formas legais e democráticas.
“Em todo caso, nunca suspeitamos que o primeiro leitor de nossa obra acabaria sendo não um homem de letras, mas justamente um homem de armas. É doloroso pensar nessa figura, um tenente, um capitão (ou seja lá o que for), que encarregaram de revisar os manuscritos um a um e de transmitir informações acerca dos mesmos. É dramático, grotesco, imaginar esse soldado lendo atarefado Super-Homem e seus Companheiros d´Alma.

“É paradoxal que ele estivesse esquadrinhando sua própria face interior sem sabê-lo, ou ainda que nós lhe estivéssemos explicando (longe dele) as causas ideológicas que haviam motivado sua insurreição para pôr “ordem” na República. Isto porque este soldado não é Super-Homem. Aí está a armadilha. É alguém que se sonha como Super-Homem, que se sonha como Zorro. (...) De nossa parte, escrevemos este livro pensando contribuir para um mundo onde ele não existisse”.

“O papel da ideologia – escreve Jofré – é eliminar as contradições que os homens e o sistema social capitalista possuem. Ela nega os seres humanos (personificando o dinheiro); nega o social (ao mostrar os bons sempre sozinhos); nega a humanidade (colocando o super-herói como um Messias que impõe a justiça e a ordem convertendo-o em um ser supratemporal dotado de poderes eternos)”. Parece com hoje, não é mesmo? Com a América trumpista de agora, Bozo-Brasil macaqueando o (Pato) Donald, e seus messias servis, mitos derrocados. Quem sabe, janeiro à frente, tudo isso em vias de extinção?

Leiam em meu blog, link a seguir, a resenha que escrevi em 1978 sobre “Super-Homem e seus amigos do peito”, acrescida de alguns tópicos extraídos do ensaio de Manuel Jofré, que consta da segunda parte do livro.
https://ronaldowerneck.blogspot.com/.../resenha-do-livro.



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Ronaldo Werneck,
poeta e escritor
MG
https://ronaldowerneck.blogspot.com/



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