16/01/2020
Ano 23 - Número 1.157




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RONALDO WERNECK



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Ronaldo Werneck



FELLINI & CCBB

100 ANOS AGORA

Ronaldo Werneck - CooJornal


Federico Fellini (Rimini, 20 janeiro 1920 – Roma, 31 de outubro de 1993), “meu cineasta de cabeceira”, faria 100 anos no próximo dia 20 de janeiro e o CCBB/Rio apresenta desde o dia 8 deste mês uma grande mostra de seus filmes (a partir do próximo dia 8), em homenagem a “Il Maestro”. O que me remete a outra mostra sobre o cineasta realizada pelo CCBB nos anos 1990, onde fui um dos organizadores.

“Alegria que dança/ tutto tutto que em mim/ Rimini-relembrança.// Minas não mais oprime/ tudo que em mim menino/Rota-rito-Fellini”, escrevia eu há cerca de dez anos no poema “Rota: Fellini”. Impossível a gente lembrar de um filme de Fellini sem a música de Nino Rota, essa “dolce & lontana” melodia que surge de cds que ainda hoje costumam rodar em meu carro pelas noites de Cataguases, essas ruas de repente transformadas em “minha Rimini”.

Em maio de 1994, programamos para o Centro Cultural Banco do Brasil/Rio uma retrospectiva em vídeo, homenageando Federico Fellini e Giulietta Masina ((San Giorgio de Piano, 22 de fevereiro 1921 – Roma, 23 de março de 1994). Fizemos um folder com uma montagem fotográfica na capa. Era dali, com uma pequena margarida nas mãos e aquele olhar patético, chapliniano, que Giulietta saltava de dentro do imenso chapéu de Federico, como num passe de mágica.

Fiz também um texto de apresentação, que ilustrei com um jogo espelhado de fotos de Giulietta dialogando com o vazio em Noites de Cabiria. A cena final de Cabiria, com o close daquele olhar pungente de Masina, que se transforma num semi-sorriso, é um dos momentos mais tocantes de toda a história do cinema.

Federico Fellini morreu em Roma, em 31 de outubro de 1993, ao 73 anos, de ataque cardíaco, um dia depois da celebração dos 50 anos de casamento com Giulietta Masina. O funeral, no Estúdio 5 de Cinecittà, seu favorito, atraiu 70 mil pessoas. Cinco meses depois, Giulietta faleceu de câncer no pulmão. Na Roma de 2006, eu tive a oportunidade de visitar Cinecittà, o Istituto Luce e, confesso que emocionado, também o Estúdio 5, aquele onde Il Maestro Federico Fellini criava a magia de seu cinema.

Ao começar um filme, Fellini prendia com percevejos, num painel verde, as fotos dos atores que estariam em cena. Terminado o filme, arrancava tudo e escrevia no painel: “E agora?”. Pois é, e agora?

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Íntegra do texto de 1994 sobre Fellini/Masina

CCBB/Rio, 1994 – Giulietta & Federico: e agora?


Com esta mostra em vídeo o Centro Cultural Banco do Brasil recupera na memória do público as imagens oníricas de um dos magos do cinema, talvez o maior deles. Simultaneamente, a tela estará imantada pela figura ao mesmo tempo frágil e magnética da atriz-ícone de sua obra. Fellini & Gelsomina & Cabiria & Ginger. Fellini & Masina. Criador & criatura. Federico & Giulietta.
Em entrevista publicada em Paris (Le Monde, 09.02.90), Federico Fellini dizia evitar cuidadosamente de ser fazer perguntas, pois era incapaz de encontrar respostas. No início de cada um de seus filmes, ele prendia com percevejos, num grande painel de feltro verde, as fotos de todos aqueles que em um dado momento poderiam ter um papel, mesmo que pequeno, a representar no projeto. Pouco a pouco, essas fotos invadiam o espaço, se acotovelavam, ficavam sobrepostas, conquistando seu direito de participação.

Sua vida então era condicionada por essa grande tapeçaria de rostos, completando um entrelaçamento de figuras, bilhetes, telegramas, croquis, fragmentos de cenários, notas diversas. No último dia de trabalho, ele arrancava tudo do painel, machucando os dedos, esfolando-se com os percevejos. Por um momento, Fellini olhava para o feltro verde vazio. Depois, como sempre, pegava uma folha em branco e escrevia: “E agora?”. Sem jamais esquecer a interrogação.
Seus filmes não eram construídos de imagens, mas construção a partir de imagens, dessas imagens que povoavam seus sonhos, cristalizadas no painel de feltro. A maior delas estava sem dúvida em sua própria casa, representada pela figura patética e clownesca de sua mulher, Giulietta Masina. Foi ela quem melhor encarou a persona clown de Fellini. A imagem franzina e pungente de Giulietta. Seus olhos, os trejeitos, o andar gauche, a aparência de quem foi colocada ao acaso no mundo. Giulietta estava ali e nos seus filmes como se estivesse sempre sobrando, à margem, como num sonho.

Um ano antes da entrevista ao Le Monde, Fellini havia declarado ao La Repubblica (Roma 02.02.89) o seu fascínio pela atmosfera cigana, nômade, apesar de ter renegado sua verdadeira vocação — a de diretor de teatro de comédias de uma trupe mambembe, farsesca. Ele dizia que a única ambição de seus filmes era a de fazer rir: “Jamais me importei com atores do tipo Greta Garbo ou Gary Cooper ou Marlene Dietrich, com sua exaltação da sensualidade. As deusas e os deuses nunca me levaram ao cinema. Os comediantes, sim. O herói, a paixão amorosa, me são estranhos”.
Fellini confessava que ria e se comovia às lagrimas com os atores cômicos. Com aquela condição clownesca, circense, do ator que leva um tombo e permanece dentro da tradição do cômico, para o qual a realidade é totalmente inimiga e lhe causa constantes e concretas dificuldades. E concluía: “Fazer pensar? Ah, não cabe a mim. Meu cinema não lhes parece uma arte de fazer rir?”.

“O cinema é sonho”, afirmava Fellini. “A linguagem do sonho é a do cinema: aparições, desaparecimentos, elipses de tempo, dilatação do espaço. Por isso, gosto de Buñuel. Ele é o único cineasta que oferece um cinema que sonha por você”.
Federico Fellini morreu em Roma em outubro do ano passado. Giulietta Masina não suportou sua ausência. Após 50 anos de casamento, também desapareceu do set e da vida em março último. “E agora?”. Esta parece ser a eterna pergunta de um fazedor de sonhos, melhor ainda que Buñuel. Nas mãos, o papel em branco e um atônito percevejo. Giulietta representava na verdade a soma de todas as imagens que povoavam o painel verde de Federico. Figuras que se desvanecem no fim de um fade.

 

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Ronaldo Werneck,
poeta e escritor
MG
https://ronaldowerneck.blogspot.com/



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