Ronaldo Werneck
O olhar de Wlademir Dias-Pino (1927-2018) |
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ave
vae ave ave voa voar é preciso vae é preciso ir vae
vae mirar ir ave wlad vae ave ave ave wlademir
A
importância de 1956 para a história da literatura brasileira pode ser
registrada mediante três episódios capitais: o lançamento da poesia concreta,
a publicação de Grande sertão: Veredas e o surgimento de A ave, de Wlademir
Dias-Pino, livro que se liga(va) às virtualidades gráficas e verbo-visuais do
concretismo, mas que apontava para um desdobrar novo nas aventuras
composicionais da própria poesia concreta. Moacy Cirne in Revista
Vozes, 1972
Wlademir Infinito Aos 90 anos, Wlademir Dias-Pino é
finalmente reconhecido como o enorme poeta e artista plástico que é, o que vem
acontecendo desde sua grande exposição “O Poema Infinito”, que no ano passado
ocupou todo um andar do MAR, o Museu de Arte do Rio, e pelo Prêmio Faz
Diferença 2016, recebido do jornal O Globo na categoria artes plásticas.
A
exposição no MAR tomou como eixo central quatro poemas: “O dia da cidade”,
“Ave”, “Solida” e “Numéricos”. Visando ampliar a experiência sensorial dos
trabalhos, esses livros-poemas foram transformados em grandes instalações
magnéticas, nas quais os elementos eram construídos e rearranjados pelos
visitantes.
Outro destaque foi a Enciclopédia Visual Brasileira, na
qual o artista vem trabalhando nas últimas duas décadas. Composto por 1001
volumes, o trabalho pretende apresentar, por meio de pranchas resultantes da
montagem alegórica de referências culturais diversas, a história da construção
da imagem no mundo.
Falar em mundo, Wlademir é um mundo habitado pelo
pensador visual que traz dentro de si. Um artista multifário: vitrinista,
tipógrafo, designer gráfico, poeta-professor, poeta-inventor, na classificação
de Ezra Pound. Para Antonio Houaiss, “um dos mais perspicazes pesquisadores
visuais no Brasil". Para o crítico Assis Brasil, “Wlademir Dias-Pino é o poeta
mais independente na área da poesia experimental”.
Um olhar pra algo
além
Pois é, já lá se vão 50 anos. A primeira vez em que vi
Wlademir Dias-Pino, foi aí por volta de 1967, não sei bem se em Cataguases, na
Mata Mineira, em casa do poeta Joaquim Branco (onde ele concederia em 1977
longa entrevista sobre os rumos da poesia visual para o Totem, jornal que
então editávamos em conjunto). Ou, quem sabe, no Rio, em Santa Teresa, numa
reunião na casa dos poetas Neide e Álvaro de Sá, já no início dos anos 1970.
Ali, onde sempre ao lado de outros companheiros, como o poeta-professor Moacy
Cirne, tentávamos estruturar os rumos do Poema Processo. Não sei bem se lá ou
cá, mas o importante é que nunca me esqueci do olhar de Wlademir.
Ele nunca
nos olhava diretamente, mas sempre enviesado, como se buscasse o infinito.
“Quem olha é responsável pelo que vê”, ele nos dizia na entrevista para o
Totem, Um olhar pra além, pra algo além. Futuro ou coisa que fosse. Esse olhar
assim desencontrado de Wlademir Dias -Pino é tudo o que eu captaria mais tarde
como definição do que fosse, seja ou é o que entendemos, ou não, sobre poesia
visual. Que eu prefiro chamar de “poema visual”, já que poema é uma coisa,
poesia outra. Poema é veículo, poesia reta de chegada.
A vida no meio
gráfico
Um rápido flashback sobre a trajetória e o próprio nascimento de
Wlademir Dias Pino já nos deixa dúvidas logo de início. É certo que o poeta
nasceu em 1927 no Rio (Rua Pareto, na Tijuca). Mas em que mês? Fala-se em
fevereiro, mas há registros de abril, outros de maio. Ainda bem que ele está
aqui e pode nos dizer a data certa: afinal, já foi comemorado ou ainda vamos
comemorar os seus 90 anos?
No Rio dos anos 1930, Luciano Pino, o pai de
Wlademir, é militante comunista, jornalista e trabalha como tipógrafo na
Imprensa Nacional. Figura marcante em sua formação, sua mãe, Laura, é quem
ensina o filho a ler e a escrever. O método didático da mãe é recortar com
tesoura palavras dos jornais editados pelo próprio marido. Esse sistema de
recorte de palavras e formas é mantido durante toda a vida do poeta, sendo a
tesoura o instrumento de realização de várias de suas obras.
Na
primeira infância, Wlademir brinca com os tipos gráficos de chumbo: “Vivi no
meio gráfico, comecei a lidar com o tipo desde muito cedo e ficou aquele amor
pela forma das letras. Convivendo com o alfabeto desde a tenra infância, um
dia conclui que a maior arbitrariedade existente na cultura humana é a
imposição do código alfabético”. Em 1937, por razões políticas, Luciano, é
forçado a transferir-se com a família para Mato Grosso. Wlademir chega a
Cuiabá com 10 anos e lá permanecerá até os 24. Nesse período, costumava ler
vorazmente os clássicos na biblioteca pública da cidade. Seu pai foi
responsável pela renovação gráfica da imprensa de Mato Grosso e, como
jornalista e comentarista, também produzia crítica de cinema e ensaios sobre a
vida social. Nessa época, Luciano conhece o poeta Manoel de Barros que vai até
sua casa para entregar um exemplar de seu primeiro livro. A visita do jovem
poeta mato-grossense marca o pequeno Wlademir que, anos mais tarde, seria um
dos responsáveis pelo início da divulgação de sua obra.
“Os Corcundas”:
Augusto e Philadelpho
Em 1938, com apenas 11 anos, já escrevia livros de
poemas. Sem seu consentimento e em segredo, um dia seu pai, que administrava
uma gráfica, publica um livro seu, que retira de um conjunto de manuscritos.
Extremamente tímido, quando vê a edição Wlademir revolta-se e coloca fogo nos
livros. Alguns exemplares são salvos.
Coincidência ou não, em 1967, para
grande espanto dos transeuntes e de tutti quanti, os poetas do movimento do
Poema Processo, Wlademir, Álvaro, Neide e Moacyr Cirne à frente, queimam
livros de poetas consagrados na Cinelândia. “Espantar pela radicalidade” era
seu slogan, a palavra de ordem.
Em 1939, “Os corcundas”, seu primeiro livro
conhecido, é impresso por seu pai, agora com sua concordância, como atesta o
cólofon na contracapa do único exemplar existente desta edição. Wlademir ainda
não completara 12 anos de idade. O universo grotesco dos personagens do poema
foi inspirado, segundo ele, na commedia dell'arte, que sua avó apresentava aos
netos, além de “forçá-los” a ouvir ópera e ler peças de teatro.
“Os corcundas e suas deformações linguísticas./ O avesso do muro por toda a
parte, o inverso./ Nuvens beliscando o perfil das coisas/ Trapézio com seus
dentes catando // arreiam seus olhos e como doadores de sangue/ se nivelam e
dormem/ aos pés dos cogumelos/ (ficando suas sombras)/ em ângulos retos
borrados/ sobre seus travesseiros de lilases/ macios como o tato/ (cabelos
invisíveis)// e a nuvem que desce forma uma jaula/ de manequins tombados”.
“Os corcundas” foi reimpresso em 1954, passando essa data a aparecer
equivocadamente como a data em que foi escrito. Nas décadas de 1950 e 1960, a
obra é objeto de análises críticas em jornais e publicações nacionais. Em
nenhuma delas é apontado o fato absolutamente extraordinário, então
desconhecido, de Wlademir tê-la escrito enquanto ainda era criança, e o
trabalho é tratado por toda a crítica como obra adulta e plena, precursora
formal de sua surpreendente originalidade e capacidade inventiva.
Em 1956,
escrevia o poeta Augusto de Campos no Suplemento do Estadão: “A rebeldia de
Wlademir se manifesta ainda, ao nível semântico, pela dessacralização do
“poético”, através de um sistemático “culto do feio” ou do “mau gosto” em ‘Os
Corcundas’, onde ocorre a intromissão de um vocabulário rejeitado em poesia e
que pela constante reiteração chega a ser, mais do que prosaico,
propositadamente incômodo e perturbador. Nesse monturo de dejetos verbais
Wlademir trata de revolver e perseguir uma espécie de fenomenologia do
indizível poético, para chegar ao fim das calvas coisas. Ao mesmo tempo
sente-se nele a consciência existencial da solidão e da alienação do poeta no
mundo moderno".
E também o crítico e poeta Philadelpho Menezes, em seu
livro Roteiro de literatura: poesia concreta e visual: "Entre o muito que foi
soterrado na história da poesia concreta, há que se dar um destaque especial
para o poeta Wlademir Dias-Pino. Em livros como ‘Os corcundas’, do final da
década de 1940, (sic) Dias-Pino mostra uma poesia incomum para os padrões
brasileiros. Com imagens estranhas, associações imprevisíveis, um vocabulário
rebuscado colocado numa sintaxe toda desconjuntada, sua poesia em verso é
surpreendente e pede uma reedição cuidadosa. Em ‘Os corcundas’, o tema é a
deformação física. Mas a deformação não fica só no tema. Ela invade a própria
linguagem, entorta a sintaxe das frases, põe vocábulos antipoéticos nos
versos, deforma as palavras".
“A fome dos lados” & “Intensivismo”
Em “A fome dos lados”, de 1940, Wlademir, com apenas 13 anos, descreve
o impacto de ver o corpo de um amigo do pai torturado e assassinado pela
polícia de Filinto Müller na ditadura Vargas:” Aqui está a mancha do
assassinado/ livre agora era bom e é livre/ sua mancha horizontal e leve/ como
são leves as coisas horizontais// Eis o morto livre/ raso e vazio/ em seu
ninho de sangue calvo/ (calvo como a bala de fuzil)/ sangue que é escudo/
assim tombado//Esse mesmo sangue cheirando/ ao sopro exausto de seu hálito
calvo/ como sombra duma parede lisa/ onde foi fuzilado outro rebelde”.
Em
1948, em Cuiabá, ao lado de outros poetas, como Silva Freire, ele funda o
movimento literário de vanguarda “Intensivismo”, trazendo em seu ideário
fortes inovações formais que antecipam as tendências mais radicais da poesia
visual e das artes plásticas dos anos 50 e 60. Wlademir volta para o Rio de
Janeiro em 1952. Nessa década, edita e programa visualmente a Revista da União
da Nacional dos Estudantes e participa dos movimentos de vanguarda política e
cultural da época. Mas, mesmo distante, está sempre com um pé em Cuiabá, como
ainda hoje.
De lá pra cá, é história já bem sabida, ou não: em 1958, o
“vitrinista” Wlademir transforma com sua arte o Carnaval do Rio numa grande
vitrine. Em 1962, escreve Antônio Olinto em sua coluna Porta de Livraria, no
Globo:
“Há quatro anos, fez o poeta Wlademir Dias-Pino, para a então
Prefeitura do Distrito Federal, uma série de desenhos concretos para a
decoração de rua do Carnaval do Rio. Pela primeira vez em nossa história,
entrou esse tipo de desenho em contato com o grande público. Os panos pintados
por Wlademir acabaram sendo a inspiração dos carnavais seguintes, e a verdade
é esta: não pode mais o carnaval do Rio voltar a ser figurativo, porque o povo
se acostumou com os triângulos, os círculos, o tipo geral de desenho, enfim,
de Wlademir Dias-Pino”.
Concretismo & SDJB
Um dos seis
poetas-pioneiros do movimento da poesia concreta no Brasil (junto a Décio
Pignatari, Augusto e Haroldo de Campos, Ferreira Gullar e Ronaldo Azeredo),
ele participa em 1956 da I Exposição Nacional de Arte Concreta em São Paulo,
que chega ao Rio no ano seguinte. Publica poemas e textos no SDJB-Suplemento
Dominical do Jornal do Brasil, o grande veículo que acolheu o concretismo em
suas páginas. Em 1967, Wlademir é um dos fundadores do Poema Processo, ao lado
de Moacy Cirne, Álvaro e Neide Sá, entre outros.
Em 17.02.1957, uma versão
gráfico-visual do poema “A Ave” ocupa toda a terceira página do SDJB. Em
23.02.1958 publica no mesmo SDJB artigo intitulado “Da negação e positivação
do espaço”, ilustrado por um fragmento em letras garrafais do poema “A Ave”.
Destaco alguns, vamos dizer, “aforismos” de seu texto: “A arquitetura antes
de ser parede é o buraco onde o homem mora. É a arte de organizar vazios”.
“O músculo da máquina é a exatidão, daí o ar abstrato das artes modernas. É
como num poema concreto: é tal a sua movimentação interior (em si) que ele
passa a ser um poema sem contorno”. “Um poema escrito é antes de tudo
visual e não sonoro – ele não é um instrumento musical. Não se há de confundir
lira nem bandolim com um poema. A poesia é silenciosa”. “A visão completa
do poema faz com que ele perca a lógica linear, o tal contorno que é o máximo
de continuidade de uma linha”. “Poesia concreta é o aparecimento máximo dos
recursos naturais da palavra, porém não é a palavra flexível e sim os seus
movimentos de ligação. Por isso, a poesia concreta não ser confundida com
trocadilho”.
Na entrevista que concedeu em 1977 ao
Totem, realizada por Joaquim Branco, dizia Wlademir: “Dentro da poesia
concreta a poesia está ligada ao sentido de conteúdo. É importante: não pode
existir o poético sem o conteúdo. O conteúdo é o mais importante no sentido de
poesia, natural do poético. Agora, quando é o poema independe do conteúdo,
quer dizer, o grafismo ou a forma de registro é mais importante do que o
conteúdo”. “O poema pode ser poético ou não, como um quadro pode ser bonito
ou não. O poema independe do poético: a inscrição é mais importante que o
conteúdo. Então ele está muito mais próximo do sentido de linguagem do que a
poesia”. “O que é importante dentro do poema passa a ser então o processo
do poema. Na poesia, o que se lê é a estrutura, como foi estruturada a
poesia”. “O que importa no poema é o processo que ele encerra. Você vê o
processo. Daí a possibilidade da versão. Na poesia se faz tradução do poético.
No poema, não. Não se permite uma tradução do poema, mas uma versão”.
Num
de seus poemas nascidos ainda Cuiabá, Wlademir registra: “muro gradeado de
fuzilaria/ encostado ao limite/ – represa social.// O muro é a tela para todo
o poema”. Pound tinha razão: os poetas são as antenas da raça. Esse velho muro
de Wlademir, num olhar de hoje, antecipador de uma cena pseudo-paulista, é
mais que up-to-date: é o grafite que esplende na integridade de sua arte.
Perdão Wlad, mesmo sabendo ser o poema visual e não sonoro, não resiste a
falar trechos de “A Ave”, como na na abertura dessas minhas palavras. Menos
ainda a dizer o poema que cometo a seguir, versão e fecho apressado de meu
texto e de seu próprio poema.
ave
vae ave ave voa voar é preciso vae é preciso ir vae
vae mirar ir ave wlad vae ave ave ave wlademir
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Ronaldo Werneck,
poeta e escritor
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