01/10/2019
Ano 22- Número 1.143


 

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PEDRO FRANCO

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Minha história obstétrica

Pedro Franco - CooJornal

Escolher especialidade para o acadêmico de Medicina pode ser difícil. Entrei para a Escola de Medicina e Cirurgia sabendo que seria cardiologista, encantado que estava com a eletrocardiografia. Sabia que nunca seria obstetra, face à minha história obstétrica durante os seis anos de curso. Apesar do início alvissareiro com a Obstetrícia. Parto corrido e do enxoval do bebê, que me deram para levar e correndo atrás da maca com minha mulher em trabalho de parto avançado, chegou à sala de parto da Beneficência Portuguesa apenas um sapatinho. O resto ficou espalhado nos corredores do hospital. Não houve tempo do médico obstetra chegar. A irmã obstetra Marcelina, de muito saudosa memória e de inteira confiança do Dr. Salazar, reclamou da minha inaptidão, para ajudá-la naquela correria. Ainda que fosse acadêmico de Medicina, estava no início do terceiro ano e Obstetrícia era disciplina do sexto ano. E nasceu Denise, marco em nossa vida, que seria completado quatro anos depois com o nascimento do Carlos Diniz, já com Dr. Salazar e Irmã Marcelina na sala. E no sexto ano como acadêmico bolsista começa minha gangorra obstétrica. Hospital Getúlio Vargas, Penha, 24 horas semanais, plantões domingos. Trabalhava na CEF, escriturário-datilógrafo, diariamente nos dias úteis, além do curso de Medicina todos os dias. Vidinha dura. Assim sendo só pude fazer plantões nos domingos. No dia a dia dos plantões fiz amizade com o Chefe da Obstetrícia, que me propôs passar três meses no setor. Depois de uns três plantões o Chefe elogia meu interesse, só que avisa que cada episiotomia que faço, depois era uma dificuldade para refazer aquele períneo. Tão aflito ficava, vendo as parturientes sofrerem, que não cortava como devia. Avisou que continuava me apreciando, só que eu devia voltar para o atendimento geral e com a ordem de não fazer chamados para partos, quando dos chamados de ambulância. Então só sairia para p mal, isto é, passando mal, que englobava todos os tipos de chamados, exceto partos. Plantões depois recebo pela escala dos acadêmicos um p mal e saio na ambulância. Chamado em morro e chovia muito. Em chegando e subindo para o casebre, era parto. De molecagem os colegas conseguiram que a telefonista indicasse um p mal, quando de fato era parto. Graças a Deus, disse o enfermeiro, que já conhecia minhas habilidades na especialidade, a criança já nasceu. É só tirar a placenta e vamos embora, que o morro está um sabão. E a placenta não saia. Já cortara o cordão umbilical, fizera o credé no recém-nascido. O enfermeiro pedia pressa, que chovia muito. Vamos logo Dr., é só puxar. Podia ser placenta acreta, que é caso raro e cirúrgico. Vamos levar a paciente. Dr olha o tempo, tá ruim. Não tínhamos subido com a maca e amigos da família colocaram a parturiente em porta de madeira, o pai de guarda chuva carregava o bebê e com cuidado fomos descendo o morro. Escorrego e fico todo enlameado. Na ambulância aviso a ocorrência e levo a paciente para o hospital. Caso de placenta acreta. Na porta do Hospital me espera o Chefe da Obstetrícia. Já não dei ordem para não sair para partos? Mostrei-lhe o chamado com p mal. Tudo bem, só que placenta acreta é raridade e nestes muitos anos de Getúlio foram vistos poucos casos com este diagnóstico. Coloque a paciente na sala de parto e vou mostrar como deveria ter agido. Em seguida a ordem. Preparar a sala para cirurgia, placenta acreta. Ainda bem que foi você a atender e não tentou tirá-la de qualquer jeito. Continuamos amigos, só que não voltei a trabalhar no setor de Maternidade, até que o chefe me chama em calmo plantão. Estou com caso complicado. Uma menina de quinze anos foi estuprada, a gestação evoluiu e estava em trabalho de parto. Subiu na mesa e se pendurou na luminária da sala, balouçando e tentando chutar quem chega perto, além de xingar os que se aproximam. Nem eu consegui chegar perto, para aplicar um tranquilizante. É uma fera de forte e vão acabar morrendo mãe e criança. Chamei o psiquiatra, ela se invocou, questionou logo sua masculinidade e quase conseguiu acertá-lo com o pé. O psiquiatra sendo xingado de tudo, arrepiou carreira. De novo tentei acalmá-la, quase me pegou com um chute e não sei o que faço. Alguma ideia? Vale dizer que era dos mais velhos do grupo de acadêmicos, único casado, já pai, trabalhava e estudava e com este tipo de vida, era destacado pelos médicos efetivos, daí o meu ótimo contato com o chefe da maternidade. Disse-lhe, deixa comigo. Pedi que tirasse todo mundo da sala de parto, escolhi canto, que ela nos seus balanços não atingisse. O lustre, mais lustre que luminária, da sala de partos era lindo e verdadeira joia para todos no hospital. Fiquei no canto da sala, nada disse. O quadro era horrível, tipo dar pena e preocupação. A gestante pendurada no lustre trouxe minha santa mãe à nossa conversa. Não satisfeita também duvidou da minha masculinidade, como já fizera com toda a equipe. Tinha repertório variado de ofensas, sempre em baixo calão. Não respondi e cruzei braços. Cansou-se de xingar e ouvi. - Não vai fazer nada? - Não. - Pra que veio então? - Sempre quis ver uma mulher explodir. Vai ser legal. Filho aos pedaços, seus órgãos para todos os lados. Você explode, morre e o mundo fica melhor. A jovem para de se embalançar. - Você vai deixar eu morrer? - Vou, é o jeito. - E se eu descer? - Infelizmente vou ter que deixar os outros lhe atenderem, mas prefiro ver você explodir. - Eu desço e podem me atender. Não quero morrer. Chamei a equipe. Ela ia se recusando a deitar-se na maca. Gritei. - Podem ir embora. Só eu vou ficar, para ver a explosão. Deitou-se na maca, foi sedada e o parto feito. Acreditem que estava com muita pena dela e só agi desta forma maluca, para salvá-la. Talvez hoje fosse processado, só que naquele momento não encontrei outra forma de agir. Meu cartaz com a Obstetrícia continuava com diástoles e sístoles. Dias depois larguei o Hospital Getúlio Vargas (Penha), fui terminar meu período de acadêmico bolsista no Hospital Miguel Couto (Leblon), onde muito aprendi, ainda que sempre passasse ao largo da sala de parto. Eram plantões de seis, seis e doze horas, muito mais amenos e sem incursões obstétricas.



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Pedro Franco é médico cardiologista, Professor Consultor da Clínica Médica C da Escola de Medicina e Cirurgia da UNI-RIO.
Remido da Sociedade Brasileira de Cardiologia. Professor Emérito da UNI-RIO. Emérito da ABRAMES e da SOBRAMES-RJ.
contista, cronista, autor teatral
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