26/10/2012
Ano 16 - Número 810

 

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PEDRO FRANCO

 

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Pedro Franco


 Objetos inanimados

 

Pedro Franco - CooJornal

Olhou as duas cafeteiras. A velha, ainda que elétrica, seria substituída pela nova, que fazia café expresso e “capuccino”. E ainda que fosse mulher ligada à casa e tivesse ficado interessada no funcionamento da nova cafeteira, tanto que a comprara, olhou com pena a velha, que já apresentava até pequenas lascas no esmaltado. E não era a primeira vez que se desfazia de um objeto, trocado por outro melhor e sentia um quê de tristeza. A situação era semelhante à vivida pelo marido quando comprava um carro e tinha que vender o anterior. Irritava-se quando o comprador começava a desmerecer o automóvel, para conseguir um preço mais em conta. Quem julgasse marido e mulher possivelmente os acharia tolos, por se importarem com trocas de objetos inanimados. Conversando, quando iam à praia na Barra da Tijuca, comentaram a troca das cafeteiras e lembraram de antigo programa da Rádio Nacional, do autor Mário Brasini, que se chamava, "A Alma das Coisas". E ambos reconheciam que os objetos não têm alma, ainda que alguns por compartilharem de uma vida em harmonia, em lar de amor recíproco, possam ganhar uma aura especial, que os tornam queridos e pseudamente animados. Quando se vai trocá-los, pelas necessidades naturais do dia a dia, deixam saudades, são envolvidos em ternura na aposentadoria e então dados para que alguém continue usufruindo dos seus serviços. Pena que os governos não tenham a mesma ternura com seus aposentados... Olhar o valor de alguns contracheques dá ideia de castigo eterno para aquele coitado que tanto trabalhou...

Voltemos aos nossos dois heróis anônimos e nem por esta razão menos importantes. Talvez a conversa dos dois naquela manhã de domingo fosse considerada despropositada pela maioria dos conviventes. Era conversa de dois que envelhecem com companheirismo e valorizam de forma excepcional o cotidiano. Os dois sempre foram assim e tiveram apego a determinados objetos e só os trocavam por necessidades práticas da vida e com um pequeno travo de nostalgia. Aqueles que não entenderiam a conversa do casal, também não compreenderiam como têm vivido juntos durante cinquenta e quatro anos de casados e são avós de três netos já muito bem encaminhados. E conhecem-se desde os dezesseis anos. Viveram sempre em mar de rosas? Não, no namoro houve interrupção de ano e meio, pois ela não aguentou os ciúmes dele. Voltando ao namoro, ela ficou quase um ano em Portugal, curtindo a avó em aldeia perto de Braga. Ainda brigaram muito, até se casarem e então aconteceu o inesperado, até para os dois. As mil atribulações de um casal em início de vida foram os ingredientes para aquela união firme e duradoura. Guardaram então certa sensibilidade especial e com convivência amena. Podiam viver em sociedade, cercados de familiares e amigos, ou sós, sem nunca se sentirem solitários, se estivessem juntos. E vão envelhecendo e conversando sobre o futuro e também sobre fatos julgados de menor expressão pelos outros, como substituir velha cafeteira. Entendiam-se, pois ambos se encantavam por alguns objetos e tinham pena de trocá-los, ainda que por um mais novo e melhor. E talvez estivessem envelhecendo juntos, unidos, irmanados, fiéis, por que não trocavam com facilidade, mesmo se fossem cafeteiras velhas, objetos inanimados, que, em amor, pareciam ganhar centelha de vida. Que assim sigam pelos seus séculos e séculos. Amem.
 

(26 de outubro/2012)
CooJornal nº 810



Pedro Franco é médico cardiologista,
contista, cronista, autor teatral
pdaf35@gmail.com
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