12/10/2012
Ano 16 - Número 808

 

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PEDRO FRANCO

 

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Pedro Franco


 Vovó e suas lembranças

 

Pedro Franco - CooJornal

Nem sempre o progresso acerta ao mudar modas. A propósito onde estão os oratórios e as cristaleiras? Como os oratórios são objetos religiosos/ornamentais, vamos deixá-los de fora desta conversa e os santos nas igrejas, ainda que tivessem os oratórios graças e seus santos suas histórias. Tive conhecido que à noite, quando perguntavam pela mulher, dizia: — Carola não tendo mais a quem aperrear, está no oratório, aperreando os santos. Fiquemos então com as cristaleiras, palavra que o corretor do Word sublinhou em vermelho, pois não reconhece a palavra. É antiga de fato. Lembro-me bem da que pontificava na casa da minha avó. O móvel tinha pouca madeira, vidros e espelhos de cristal em profusão e estrutura metálica, onde as prateleiras de vidro podiam ser ajustadas em várias alturas. Artística fechadura com inútil chave dourada. Dentro as riquezas de metais e vidros da família. Riquezas mais sentimentais que por valores reais. A taça de cristal vermelha do casamento de sua bisavó, as taças de cristal de bacará de seu tio avô, que era Coronel da Guarda Nacional, uma xícara de Limoges muito antiga que seu avô recebeu da avó dele, sete leõezinhos de cristal que serviam de descanso para talheres, uma biscoiteira de cristal da Bavária, que seu avô ganhou dos funcionários ao se aposentar no Banco, três cálices italianos cinzelados, joias de artesanato, dois paliteiros de prata, seis pratos de porcelana cinzelados a ouro com a monograma da família, algumas travessas e sopeiras de vários aparelhos antigos, que contavam histórias de casamentos, alguns vidros e metais de menor valia monetária, se comparados aos demais e com grande valor emocional, falando da história de batizados, casamentos e noivados. Enfim o repositório de trabalhosa conservação da família. As prateleiras eram de vidro, os fundos e laterais de espelhos de cristal. As demoradas limpezas mensais, com vítimas e lágrimas. — Sua tia quebrou ontem o último cálice do jogo de casamento de sua bisavó! Havia sempre em cada família a tia, que ficara solteira. —Também ela limpa com pressa e de má vontade. Tirar peça por peça, lavá-las, secá-las ao sol, tirar prateleiras de vidro, limpar os espelhos, brunir os metais, tudo isto podia redundar em cacos, cortes e amuos. Dar petelecos sonoros nos cristais para deleite das crianças, que pediam para brincar um pouquinho com os leõezinhos de cristal, com o quebra-nozes de prata, cálices minúsculos, xicrinhas de porcelana chinesa, com rostos de mulheres nos fundos translúcidos. Cristais de cores, às vezes de cores e desenhos duvidosos, desarmonia entre os ocupantes da cristaleira, de difícil arrumação e fácil atulhamento, sem categoria de estilos, ou equivalências. Ternas lembranças de casamentos, raros descasamentos, que a sociedade era bem hipócrita e as mulheres muito aturavam. Recordações de mortes e memórias.

Não há lugar nas amplas salas modernas para as entulhadas cristaleiras, que tinham de tudo, até cristais. É, não há lugar para museus nas belas salas de hoje. Vá lá uma ou outra peça antiga e de gosto. Nada de vitrines de recordações. E como era bom, em tardes de domingos de chuva, depois do almoço ajantarado, ficar ouvindo Vovó contar a história de cada peça, que por sua vez contava a existência de pessoas conhecidas, algumas só de nome, que tinham aos meus olhos um especial encanto.
— Esta era a peça predileta de sua bisavó e veio da Fazenda Santa Rita. Deixou-me em testamento, para evitar brigas. Morreu de crupe. Aquela ali... E a tarde caia e vovó contava e eu e minhas duas primas ouvíamos enlevados até a hora da merenda, histórias que já sabíamos e que nem por isto perdiam a graça. A graça era vovó, a graça vinha dos habitantes da cristaleira, encantos que não tenho para mostrar aos meus cibernéticos netos.


(12 de outubro/2012)
CooJornal nº 808



Pedro Franco é médico cardiologista,
contista, cronista, autor teatral
pdaf35@gmail.com
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