07/09/2012
Ano 16 - Número 803

 

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PEDRO FRANCO

 

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Pedro Franco


 O garoto que entrega jornais

 

Pedro Franco - CooJornal

Minha filha e meu filho reclamavam que acordo, se não alegre, pelo menos animado, o que não ocorria com eles, ou com os de sua geração, até que viraram adultos, profissionais eficientes e trabalhadores. Custavam a engrenar no dia. Portanto, se a saúde vai bem, amanheço alerta e comunicativo. E nesta madrugada acordei zangado, pois era cedo, domingo e poderia só acordar às sete horas. Eram quatro e meia e o garoto, que entrega jornais aos assinantes, tem uma traquitana barulhenta que me acordou. Pelo barulho, característico, ouvido em outros dias, é ele. Tem um carrinho, onde empilha os jornais e puxa. Com as irregularidades das calçadas e a travessia da rua, caindo ou subindo do meio fio, faz um barulho alto no silêncio da madrugada. Hoje falo com ele. Que ganhe os trocados entregando os seus jornais, mas use um veículo não barulhento e deixe as madrugadas do Grajaú em silêncio.

Levantei a persiana, olhei a rua, que era atravessada por ele na madrugada chuvosa. O "bouganville" do prédio em frente está florido, as telhas da casa do lado do edifício brilham na chuva. O garoto é magro, uma capa de plástico sobre os ombros, a beirada da calça "jeans" molhada, o tênis encharcado, atingiu o outro lado da rua e puxou o carrinho também envolvido em plástico. Percebo que é muito cuidadoso com as notícias que diariamente veicula. O que vi logo me acalmou. Não ia reclamar hoje, não ia reclamar nunca. Por motivos óbvios. Primeiro, não acordo todos os dias com o ruído da traquitana, segundo, mesmo que acordasse, seria um modesto tributo ao trabalho duro de garoto trabalhador, que deve ganhar pouco por atividade diária e cansativa. Por certo o meu sono estava mais leve, face aos problemas do dia a dia deste violento século XXI. E que violência o garoto do jornal pode ter que enfrentar, até para não lhe roubarem os jornais, ou o velho tênis, ou a capa de chuva transparente... Teria tomado café? E se oferecesse um café diário? Não ofereceria, nem ele aceitaria, pois pensaria que por trás do oferecimento deveria haver qualquer interesse espúrio. Pelo menos não vou reclamar do ruído. Desci a persiana, que ele já saíra do meu campo de visão, ainda que ouvisse o ruído do carrinho andando pelo resto da rua. Arrimo de família, mãe pobre, irmãos menores? Ficarei com estas dúvidas, que podem até voltar em outras madrugadas, quando ouvir os mesmos ruídos. Ficarei na cama coberto e ele continuará entregando jornais pelas madrugadas da vida.

Ao anônimo menino a homenagem desta crônica, escrita enquanto seu barulho desapareceu e ficou a música gostosa da chuva no telheiro da minha velha casa. Que papelão teria feito, se tivesse reclamado! Agradeço à visão do "bouganville", às telhas molhadas, à madrugada chuvosa. Quem sabe agora consiga até tirar mais um cochilo? A que horas começa o trabalho do menino e até que horas vai, entregando os jornais de cada dia? Com sol ou com chuva.


(07 de setembro/2012)
CooJornal nº 803



Pedro Franco é médico cardiologista,
contista, cronista, autor teatral
pdaf35@gmail.com
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