01/04/2021
Ano 24 - Número 1.214




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MILTON XIMENES

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Milton Ximenes Lima

 

 

PÉS NA COVA

Milton Ximenes Lima - Colunista, CooJornal


E, de repente, a escuridão se fez presente.
Definitiva e total.
Ascendo, em levitação não imaginada. Sensação de uma subida sem destino.
Só uma luz, bem distante, lá no fim de um túnel, me atrai a atenção.
Lembrança me vem de versos de gente da minha terra: “Para o nauta perdido pelos
mares,/rumo incerto a seguir quando anoitece,/ entre a luz sombria dos luares,/ ela é o
primeiro guia que aparece”//

Saindo da névoa que se derramou no espaço, vislumbro, então, vultos vestidos de branco todos sorridentes, receptivos, se aproximando...

Identifico rostos de familiares sepultados em vários momentos dos tempos atrás.

De mau humor, energizei mensagens para eles:

- Saiam daqui, almas antigas!!

Lá embaixo, no quarto do hospital, o lençol puxado pela mão direita da enfermeira vai me cobrindo o rosto.

Pouco depois, um moço, sério, finas luvas nas mãos, tateava pontos dispersos do meu corpo, por momentos permaneceu pensativo, olhar para o alto. Oscilava lateralmente a cabeça, num embalo negativo:

- Perdemos mais um, enfermeira...

Logo depois, meu corpo vai trepidando ao balanço de um carro sobre os paralelepípedos irregulares de várias ruas. Em uma parada, gente sem cerimônia me amassa músculos e ossos, desvenda minhas peles. Escreve um deles algo num papel.

Novos embalos do carro, estacionamento em outro lugar. Troca de vozes revela que é hora de convocar os parentes... A mulher, primeiro, que ela se recolhera ao apartamento, na esperança de descansar um pouco do plantão de quase uma semana que assumira no hospital.

Depois de muito tempo abandonado, outros trepidares no corpo. Estou, finalmente, entrando na “cidade dos pés juntos”! Agora, meu corpo jaz numa sala inutilmente refrigerada naquele inverno agressivo. Sala sem graça, paredes claras, só a presença de um Cristo crucificado e fiscalizador acima da cabeça.

Espremem e ajeitam minhas carnes no espaço daquela grande caixa de madeira envernizada.

Cobrem-na, depois, com uma tampa Apagam a luz e se retiram. E de novo a escuridão se faz presente...

Aprendizados da solidão, que deveriam só ser desfiados em vida, renascem, timidamente. Ainda mais porque ninguém gosta de fazer companhia a defunto.

Boa noite! (Só para eles, operários fúnebres!).
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Dia seguinte.

Um jardim florido está prometido para me cercar o corpo. Antes, encaixam-me a dentadura. Seguem-se diversos atos da chamada higiene; um clister me desvirginiza, perfumes aspergidos abundantemente além dos caracóis dos meus cabelos, em cima e... em baixo!

Por mim, cheiros de sovacos mal lavados e de pés-chulés deveriam permanecer, para propositadamente afastar os delicados narizes das gentes-zumbis que, por obrigação, me visitariam.

Deixei de ser nu, vieram camisa, calça e sapatos novíssimos. Uma raspadinha na barba, uma loção para tapear, vigorosas penteadas na parte norte da minha cabeça embelezaram meu corpo em despedida.

Aí chegaram as poucas floridas coroas, oferecendo os nomes de gente de convivências. Das associações esportivas e culturais, nada a esperar: viviam todas na tentativa de superação dos seus déficits! Da presença de colegas de trabalho, alguns, nem aguardar: idosos sobreviventes, tropeçando entre comprimidos e exercícios fisioterápicos receitados... meus derradeiros heróis!

Familiares, de perto e de longe, vão chegando, se embutindo no silêncio que o momento socialmente exige. Depois, um pouco afastados, vão me esquecendo, e, às vezes, até sorridentes, comentam, em gargalhadas, alegrias da vida. Graças aos céus, nenhum deles me chamou de “coitado” ou “coitadinho”! Alguns, após os cumprimentos protocolares, emudecem e recordam tradicionais orações. Para quê? Já passou da ocasião. Melhor seriam pronunciadas ou mentalizadas na fase de tentativas médicas de superação e convalescença!

Além do mais, Deus, coitado, tem seu imenso horário de atendimento, tem que ter ouvidos para toda a humanidade! Já imaginaram? Haja fundos sacos de paciência! Papa Francisco que O defenda das muitíssimas invocações!

Já decidiram os novos donos do “meu corpo”: desta vez as minhocas passarão fome e serei lambido pelas implacáveis chamas de uma cremação. Deverá ser um calorão, mas já estou aqui no ar, longe e livre desta sensação “infernal”! Só lamento que, antes, não tenham doado minhas roupas e acessórios a quem precisasse! Ou será que os cremadores já não providenciariam isto, silenciosa e sorrateiramente, antes de entrarem em ação? Mas, dizem, que a família é chamada a testemunhar... Tenho minhas dúvidas!

De súbito, esbarro com o sábio Dante Aliguieri e suplico que me conduza, ao menos, para o purgatório! Pergunto-lhe, ao mesmo tempo:

- O que faz aqui, tão longe da sua terra?

Não me responde. Não entende o português, vive falando só em italiano. Passa para o latim. Custei a entender, me enrolo todo, mas o diminuto grau de intimidade com a falecida língua dá, ainda, para o gasto... Essas malditas declinações sempreme atrapalham! Me valho até da parecença com a canção de Roberto Carlos: “Essas declinações me matam!”

Demoro a traduzir. Teimoso catolicão, Dante transfere para mim a responsabilidade dos momentos últimos:

- “Só depois que o Pedrinho, lá na entrada do Paraiso, lhe der uma absolvição!”

- “Tô roubado”... pensamenteio, e vou me ausentando, de fininho... Meus muitos e possíveis pecados recolho à fortaleza das memórias da minha cachola e não os divido com ninguém, mesmo estando em outra dimensão...

- Com licença, minha gente que me lê agora... vou, antes, apurar o mistério da mensagem daquela luz que se me ofereceu numa escuridão lá no início do caminho deste repouso final.

Depois eu conto... se me deixarem, ou ... me psicografarem!


(*) Poeta Benjamin Silva, em “ O Itabira”, Cachoeiro de Itapemirim, ES.


 

Comentários podem ser enviados diretamente ao autor no email miltonxili@hotmail.com





Milton Ximenes é cronista, contista e poeta
RJ

Email: miltonxili@hotmail.com
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