16/05/2020
Ano 23 - Número 1.173



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MILTON XIMENES

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Milton Ximenes Lima



FUNDO DE GAVETA

TRÊS FATIAS DE PERU

Milton Ximenes Lima - Colunista, CooJornal

Primeira

Era representante de produtos farmacêuticos em regiões fluminenses e vizinhas à capital. Naquele lugarejo, o médico que ainda faltava visitar era o Dr. Maciel. Não o encontrando, resolveu se acomodar num botequim próximo, disposto mesmo a aceitar as reclamações do seu estômago, sempre saudoso dos almoços apetitosos da mulher. Embarcou numa média, pão e manteiga, um queijinho também.

Enquanto esperava ser servido no balcão, distraía-se com os voos das teimosas moscas em torno do açucareiro. Instintivamente, vez ou outra, espantava-as. Pouco depois, bem perto, um homem terminava o seu lanche, acendia um cigarro, e calmamente lançava nos ares a incômoda fumaça da primeira baforada. Virou-se, depois, e lhe fez a consulta:

- O amigo aí pode me dizer que horas são?

Prestativo, fez a mão direita deslizar para o bolso superior da frente da calça, e deixou sair um ar de surpresa:

- Ahh... onde botei ele?

- Hein? - inrterferiu o desconhecido.

- Ora veja o Senhor, isto nunca me aconteceu. Há seis anos que vivo nessa profissão de representante e esse relógio sempre me acompanha!

A princípio sem muito interesse, o desconhecido deixou-se ficar a ouvir a estória.

- Sabe de uma coisa? O relógio é valiosíssimo. Já tive boas propostas de compra dos comerciantes de antiguidades. É um raro relógio de bolso, suiço. Acompanha a família desde nossos bisavós paternos. Tradição familiar é passá-lo tão logo morra o último possuidor. Para não haver briga, nós o sorteamos. Verdadeira relíquia! Faço questão de andar com ele, apesar das invenções dos novos tempos. Chama muito a atenção pelo artesanato do seu acabamento... uma joia!

Prosseguiu sem, primeiro, verificar a atenção do outro:

- Sempre, na hora de dormir, o deixo sobre a cômoda. Hoje, na pressa de resolver dois negócios antes de vir para aqui, esqueci ele!

- De manhã, a gente fica meio distraido, e ainda mais com pressa! – opinou, finalmente, o homem, e ainda acrescentando: - Não se lembrou dele quando tratava dos negócios?

- Falando francamente, nem me toquei, tal a certeza de estar com ele. E veio o trem, só tinha preocupação em chegar à estação e alcançar ele.

- Mas tem outro trem, a cada vinte minutos! Se você se lembrasse do relógio, era só dar uma esticada até sua casa,

- Muito contramão, sabe? Veja o Senhor que moro na rua Aristides Lopes, bem lá no final, lá perto do número 200, e a estação fica do outro lado da cidade!

- Éééé, não dava pé mesmo!

Despediram-se logo depois, quando o desconhecido, pretextando interesse a resolver na escola dos filhos, se afastou.

- Tá bem, mas se precisar um dia de algum remédio, taquí o meu cartão...

Segunda

D. Guilhermina interrompeu seus afazeres domésticos ao ouvir o som da campainha instalada lá no portão do quintal. Abriu a janelinha da porta principal, em cautelosa sindicância. Ouviu:

- É aqui a casa do “Seu” Teodoro Buião? O das propagandas de remédios?

- Sim, senhor!

- Olha aqui o cartão dele. Estive com ele em Prado Verde e ele me pediu um favor.

Abrindo a porta, ela percebeu que o homem trazia um peru sob o braço esquerdo. Franziu a testa.

Sentindo a hesitação dela, o visitante se adiantou:

- Foi ele quem mandou isto. Comprou no nosso sítio, lá na roça, e mandou entregar à senhora.

- Ah, esse meu marido! Sempre preparando surpresas! O senhor não quer se sentar?

- Me desculpe, dona, tenho muita pressa... E estou aqui para atender também a um pedido dele. O “seu” Teodoro me pediu para que levasse o relógio que esqueceu em cima da cômoda.

- Ah, sim, um momento...

Teodoro chegou à casa quase à noitinha. Sorridente, a esposa veio lhe agradecer o presente.

- Que presente?

- O peru, homem que você mandou o moço me entregar! Tá lá, preso no galinheiro, e ele ainda me disse que você mandou ele buscar o seu relógio... em cima da cômoda...

- Heein ... Santo Deus! Meu relógio de estimação!

A Polícia, cientificada, iniciou a papelada do inquérito e autorizou diligências.

Terceira

O peru, enquanto isto, já passeava mais livremente pelo quintal, ensaiara até um glu-glu-glu... enquanto Teodoro lhe lançava olhares de ódio.

E mais gente chegando:

- Minha Senhora, somos da Delegacia. Estamos na pista do ladrão. Talvez seja para esta noite a prisão dele!

- Tomara que sim! Meu marido não tem dormido, tem trabalhado pouco, o relógio era bem de família!

- Entendo. Mas precisamos de um elemento para constar do nosso relatório: ver o peru!

- O peru, por quê?

- É que vai haver um interrogatório. As pessoas que se apresentaram para ajudar têm que descrever direitinho toda a ave...

Pela primeira vez, os policiais e os presos da Delegacia saborearam um bom Natal. D. Guilhermina e o “seu” Teodoro preferiram ou uma galinha ao molho pardo, ou à cabidela...te!

Comentários podem ser enviados diretamente ao autor no email miltonxili@hotmail.com





Milton Ximenes é cronista, contista e poeta
RJ

Email: miltonxili@hotmail.com
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