01/11/2019
Ano 22 - Número 1.147



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MILTON XIMENES

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Milton Ximenes Lima



Fundo de Gaveta

Miscelânea cirúrgica

Milton Ximenes Lima - Colunista, CooJornal

- Capitão, me deixa operar lá fora! Os meus pais podem pagar as despesas...

- Negativo, reco, você vai ser operado mesmo pelos nossos médicos! É gente muito competente!

Não tive alternativa. Imaginei-me qual boi esperando, num curral próximo, a hora do corredor da morte. Ao meu lado, se espalhava uma procissão de doentes pelo imenso pátio do hospital militar. Todos a se entenderem ou a se desentenderem com os olhos. Coisa de doido! De manhã e à noitinha, as vigilantes irmãs de caridade impunham rezas, e, algumas vezes, alguns lhes arremedavam as vozes. Quando descobertos, os autores da brincadeira perdiam a suculenta boia. (Cá entre nós, medindo sabores, não se sabia se aquela comida era prêmio ou não).

A cirurgia, porém, já estava demorando e a lenta rotina hospitalar mais me atormentava. Até que, ocorrendo um desastre com um caminhão numa manobra de instrução, originando muitos feridos, foi necessário esvaziar camas para acolhê-los. Terminada a arrumação, um Sargento perguntou, em alta voz, quem se candidataria às próximas operações. Ansioso, apresentei-me, iniciando a fila dos “desesperados” que caminhava pelas alamedas em direção ao pavilhão cirúrgico. Selecionaram-me e a um branquelo “Catarina”, alto e exibidor de músculos.

Ainda na enfermaria, anestesia inicial com comprimidos. Depois que verificaram que não mais comandávamos os movimentos dos braços e das pernas, nos alçaram com os lençóis, nos despejaram em duas macas, e nos empurraram até a sala de operações, abandonando-nos sobre as mesas cirúrgicas. Pensei: veríamos, deste modo, graciosamente, as mútuas intervenções? Não gostei. Veio uma anestesia na veia. Mas quando o bisturi arranhou a pele, ainda protestei:

- Tá doendo!...

Inútil queixa... Nem sei se ouviram minha fraca voz. Não se comoveram, continuaram nas suas “perícias”. Ante à indiferença dos médicos e enfermeiros quanto ao meu aviso, não tive dúvida: tasquei-lhes uma floricultura de merecidos palavrões!

Ao meu lado, o Catarina, achando que a sua hérnia a ser operada estava muito misteriosa, ninguém lhe explicando nada sobre o início dos atos, rebentou as correias que prendiam seu corpo à mesa. Correria dos enfermeiros! Enquanto isto, a minha dor, mesmo bem menor, reclamava... E o médico, a se curvar sobre minha barriga, mostrando, ainda, detalhes aos acadêmicos curiosos que o cercavam. De repente, a observação “esplêndida” me chegou aos ouvidos:

- Ainda não chegamos ao campo operatório do apêndice...

Já pensava terminado o suplício! Em consequência, enquanto tive fôlego e consciência, vomitei novo enxame de palavrões para presentear aquela colmeia de saberes. Aplacaram-me com máscara de clorofórmio... recurso oportuno na época. Muito tempo depois, já na enfermaria, não recebia visitas, nem dos pacientes vizinhos, porque, meio inconsciente, ainda, continuava a resmungar xingamentos.

Suspensas as cautelares medidas do pós, minha mãe me visitava, e me atolava de frutas. Revoltado com o tratamento disciplinar, eu nem as comia todas. Repassava-as aos outros doentes do pavilhão de loucos, onde me acomodaram, por deficiência de espaço e... inconveniências vocabulares. Entre eles um me impressionava: cabelos eriçados, olhos saindo das órbitas, as nádegas quase suprimidas por uma granada, no último conflito mundial. Neurose de guerra, o seu caso. Vez em quando nos apontava uma metralhadora imaginária e, com recursos vocais espalhafatosos, nos enquadrava como vítimas.

E então, aconteceu um novo acidente no treinamento de um quartel, ou coisa semelhante, antecipando, por exiguidade de camas, minha saída dali.

Em casa, brinquei, assustando a todos:

- Não aguentei mais, fugi, sou desertor agora! A qualquer hora uma patrulha virá me capturar!

Na data marcada, porém, reapresentei-me aos médicos do Centro Cirúrgico. Liberaram-me. Já na unidade-quartel de origem, com dez dias de baixa do hospital, o Capitão da minha Companhia queria me obrigar a uma ajuda no transporte de móveis pesados, entre dois andares, com escadas a superar. Faria, sim, concordei – mas com o Senhor se responsabilizando por mim!

Recuou. Deste modo, fiquei perambulando pelas salas dos prédios do Quartel, deixando, por algum tempo, apesar de certas incumbências administrativas, de bem servir totalmente à Pátria e deitado eternamente em berço esplêndido até o momento de melhoras, e posterior “baixa”.

E aí ainda teve gente “tentadoramente” me convidando:

- Ô soldado, você não quer engajar? A gente pode lhe arranjar uma promoção!

Fico calado ou armo, novamente, um tiroteio de palavrões?


 

Comentários podem ser enviados diretamente ao autor no email miltonxili@hotmail.com





Milton Ximenes é cronista, contista e poeta
RJ

Email: miltonxili@hotmail.com
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