Lembra-se de tudo. Ri sozinho: pitoresca passagem profissional ressurge no
seu cérebro. Gostava da profissão, acertara na escolha. Médico, procurava
atender a todos com muita atenção e carinho, como era, aliás, do seu dever.
Muitas vezes já entrevendo nas queixas dos adoentados as origens dos seus
males. A maioria, confissões de tristezas do mal e do bem-querer que
desaguavam negativamente nas partes então mais fracas do corpo. Era preciso,
também, em certos casos, conhecer e sentir os familiares, saber dos
procedimentos do dia a dia deles, estudar-lhes o local de vivência. Nem
sempre possíveis, dependia da ajuda de superiores e auxiliares. Nascera
predisposto a ajudar sempre, o sofrimento das pessoas o sensibilizava,
quaisquer que fossem suas raízes, e também as ouvia pacientemente no
consultório do centro da cidade, encaminhando-as, na medida da sua
avaliação, para melhores caminhos à recuperação da sua saúde.
Mas não
era ali que realmente era testado. Era no plantão daquele movimentado Posto
de Saúde (SUS) onde emergências constantes e desesperadas lhe impunham um
ritmo mais rápido de atendimento, forçando-o a soluções imediatas e
perspicazes. Assumia o desafio, não gostava de se prender à pequena sala que
lhe fora destinada, burocratizando-o a simples rabiscador de receitas,
formulários e encaminhamentos. Aprendera aí a detestar a obrigação de
avaliar a sinceridade dos que compareciam a procura de atestados
justificativos de ausências ao trabalho. Delegou a tarefa para o acadêmico
que ali estagiava, instruindo-o com vivências da sua carreira. E ele vinha
cumprindo tudo direitinho. Como neste plantão matutino:
- Os que
vieram para se consultar, fiquem sentados nos bancos aqui da esquerda. Os
que vieram apanhar atestados, naqueles da direita.
Contagem feita: no
primeiro grupo, sete; no segundo, treze...
Emendou:
- O doutor
acabou de me telefonar, vai se atrasar por causa de uma cirurgia... e acho
que o pessoal dos atestados pode ir fazer o que tem que fazer e voltar logo
mais à tarde, ou amanhã, pela manhã. Eu não tenho autoridade para assinar os
atestados, tá bem? Agora, já vocês, os das consultas, vou ver o que posso
fazer! E... entre aqui o primeiro...
E apesar das cautelas, não
resistiu em atuar quando identificou certo dia, aquele homem useiro e
vezeiro em pedidos de atestados. Vinha, naquela vez, amparado por mais dois.
Antes mesmo de qualquer manifestação sua, eles sugeriram:
- Doutor,
não precisar examinar ele, nem receitar nada, ele quer só um atestado!
- Mas como? – reagi – Sou pago pelo governo para isto! É minha
obrigação!
Os companheiros do homem tentaram explicar, vozes mais
calmas:
- Doutor, pode deixar, o problema dele é outro... Vamos levar
ele para um centro, para ver se tiramos um espírito do mal que tá
incorporado nele! Desculpe a gente, doutor, ele está muito nervoso!
Não se deixou surpreender, falou baixinho, como se os fizesse cúmplices de
uma verdade desabonadora:
-Mais que coincidência! Eu também tenho um
Centro, recebo um caboclo e sei resolver isto! Fechem a porta e tragam ele
depressa para aqui perto de mim!
Diante dos olhares espantados dos
amigos do homem, começou a se saracotear, a revirar os olhos, a agitar as
mãos, passando-as por diversas partes do corpo do paciente (incorporado),
simulou descarregos, invocou divindades, e, de repente, após diversos brados
de “Saravá!”, desfechou-lhe violento tapa no rosto, que o lançou longe,
desequilibrando-o contra a parede.
Depois, trouxe-o novamente para o
centro da sala, obrigou-o também à dança dos terreiros, reiniciou as
invocações e, em inesperado movimento, pospegou-lhe outro fortalecido tapa,
à altura do pescoço.
Ainda tonto, ainda tentando se apear com a ajuda
dos amigos, o homem tratou de buscar a porta, sem antes deixar no ar seu
recado de desagravo:
- Doutor, o senhor vá para a put... que o pariu,
porque uma terceira porrada eu não vou levar, não!
Demorou a se
tranquilizar e o próximo paciente autorizado a entrar na sua sala chegou,
mesmo, a estranhar o incomum e súbito sorriso que desabrochou dos seus
lábios, enquanto ordenava:
- Vamos ver primeiro a sua pressão, “seu”
Antonio!
......................................
Muito
mais tarde veio saber da história de um colega, também da equipe de um Posto
de Saúde, lá no subúrbio do norte carioca. Para chegar ao local de trabalho,
ele tinha que, no caminho, vencer um grande viaduto sobre uma praça e,
naquele dia, teve ainda que enfrentar ali demorado engarrafamento. Estava
pacientemente aguardando o movimento dos veículos quando um morador de rua,
vassoura na mão, saiu da calçada e pôs-se a vibrar golpes contra a lataria
da frente do seu carro. Abriu a janela, começou a interpelá-lo em altos
brados, mas o homem abandonou o local imiscuindo-se entre os carros, correu
para a calçada do outro lado. Revoltado, protestando, chegou a abrir a porta
do seu veículo, mas viu que seria inútil a perseguição naquela situação do
trânsito. Lamentando que o automóvel era de recente aquisição, teve que se
conformar com as despesas dos necessários reparos.
Um dia, em hora
de atendimento matutino no seu Posto, descobriu o mesmo homem sendo atendido
por um estagiário. Gripe forte, muita tosse, talvez alguns problemas
pulmonares - era o diagnóstico inicial. Interferiu:
- Entregue ele,
primeiro, a D. Nita, lá na Assistência Social, para um bom banho e cuidados
pessoais. Depois, deixe-o na Enfermaria para nossas observações e
tratamento...
Uma semana depois lá estava o homem bem bonitinho numa
nova roupa, a caminho da rua. Instruiu, antes, ao estagiário:
- Dê a
ele, antes de sair, estes comprimidos...
Ao estagiário, meio
incrédulo sobre a natureza da medicação, teve que insistir:
- Sei o
que estou fazendo, faça ele engolir...
Em despedida, o paciente
então caminhou até a portaria, mas não passou da escadaria e do jardim à
frente do prédio. Intestinos barulhentos doendo, agachou-se entre arbustos,
não dava para se segurar por mais tempo e procurar as privadas da
enfermaria, lá no fim do corredor.
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