16/05/2019
Ano 22 - Número 1.125



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MILTON XIMENES

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Milton Ximenes Lima



Os pacientes especiais

Milton Ximenes Lima - Colunista, CooJornal

Lembra-se de tudo. Ri sozinho: pitoresca passagem profissional ressurge no seu cérebro. Gostava da profissão, acertara na escolha. Médico, procurava atender a todos com muita atenção e carinho, como era, aliás, do seu dever. Muitas vezes já entrevendo nas queixas dos adoentados as origens dos seus males. A maioria, confissões de tristezas do mal e do bem-querer que desaguavam negativamente nas partes então mais fracas do corpo. Era preciso, também, em certos casos, conhecer e sentir os familiares, saber dos procedimentos do dia a dia deles, estudar-lhes o local de vivência. Nem sempre possíveis, dependia da ajuda de superiores e auxiliares. Nascera predisposto a ajudar sempre, o sofrimento das pessoas o sensibilizava, quaisquer que fossem suas raízes, e também as ouvia pacientemente no consultório do centro da cidade, encaminhando-as, na medida da sua avaliação, para melhores caminhos à recuperação da sua saúde.

Mas não era ali que realmente era testado. Era no plantão daquele movimentado Posto de Saúde (SUS) onde emergências constantes e desesperadas lhe impunham um ritmo mais rápido de atendimento, forçando-o a soluções imediatas e perspicazes. Assumia o desafio, não gostava de se prender à pequena sala que lhe fora destinada, burocratizando-o a simples rabiscador de receitas, formulários e encaminhamentos. Aprendera aí a detestar a obrigação de avaliar a sinceridade dos que compareciam a procura de atestados justificativos de ausências ao trabalho. Delegou a tarefa para o acadêmico que ali estagiava, instruindo-o com vivências da sua carreira. E ele vinha cumprindo tudo direitinho. Como neste plantão matutino:

- Os que vieram para se consultar, fiquem sentados nos bancos aqui da esquerda. Os que vieram apanhar atestados, naqueles da direita.

Contagem feita: no primeiro grupo, sete; no segundo, treze...

Emendou:

- O doutor acabou de me telefonar, vai se atrasar por causa de uma cirurgia... e acho que o pessoal dos atestados pode ir fazer o que tem que fazer e voltar logo mais à tarde, ou amanhã, pela manhã. Eu não tenho autoridade para assinar os atestados, tá bem? Agora, já vocês, os das consultas, vou ver o que posso fazer! E... entre aqui o primeiro...

E apesar das cautelas, não resistiu em atuar quando identificou certo dia, aquele homem useiro e vezeiro em pedidos de atestados. Vinha, naquela vez, amparado por mais dois. Antes mesmo de qualquer manifestação sua, eles sugeriram:

- Doutor, não precisar examinar ele, nem receitar nada, ele quer só um atestado!

- Mas como? – reagi – Sou pago pelo governo para isto! É minha obrigação!

Os companheiros do homem tentaram explicar, vozes mais calmas:

- Doutor, pode deixar, o problema dele é outro... Vamos levar ele para um centro, para ver se tiramos um espírito do mal que tá incorporado nele! Desculpe a gente, doutor, ele está muito nervoso!

Não se deixou surpreender, falou baixinho, como se os fizesse cúmplices de uma verdade desabonadora:

-Mais que coincidência! Eu também tenho um Centro, recebo um caboclo e sei resolver isto! Fechem a porta e tragam ele depressa para aqui perto de mim!

Diante dos olhares espantados dos amigos do homem, começou a se saracotear, a revirar os olhos, a agitar as mãos, passando-as por diversas partes do corpo do paciente (incorporado), simulou descarregos, invocou divindades, e, de repente, após diversos brados de “Saravá!”, desfechou-lhe violento tapa no rosto, que o lançou longe, desequilibrando-o contra a parede.

Depois, trouxe-o novamente para o centro da sala, obrigou-o também à dança dos terreiros, reiniciou as invocações e, em inesperado movimento, pospegou-lhe outro fortalecido tapa, à altura do pescoço.

Ainda tonto, ainda tentando se apear com a ajuda dos amigos, o homem tratou de buscar a porta, sem antes deixar no ar seu recado de desagravo:

- Doutor, o senhor vá para a put... que o pariu, porque uma terceira porrada eu não vou levar, não!

Demorou a se tranquilizar e o próximo paciente autorizado a entrar na sua sala chegou, mesmo, a estranhar o incomum e súbito sorriso que desabrochou dos seus lábios, enquanto ordenava:

- Vamos ver primeiro a sua pressão, “seu” Antonio!


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Muito mais tarde veio saber da história de um colega, também da equipe de um Posto de Saúde, lá no subúrbio do norte carioca. Para chegar ao local de trabalho, ele tinha que, no caminho, vencer um grande viaduto sobre uma praça e, naquele dia, teve ainda que enfrentar ali demorado engarrafamento. Estava pacientemente aguardando o movimento dos veículos quando um morador de rua, vassoura na mão, saiu da calçada e pôs-se a vibrar golpes contra a lataria da frente do seu carro. Abriu a janela, começou a interpelá-lo em altos brados, mas o homem abandonou o local imiscuindo-se entre os carros, correu para a calçada do outro lado. Revoltado, protestando, chegou a abrir a porta do seu veículo, mas viu que seria inútil a perseguição naquela situação do trânsito. Lamentando que o automóvel era de recente aquisição, teve que se conformar com as despesas dos necessários reparos.

Um dia, em hora de atendimento matutino no seu Posto, descobriu o mesmo homem sendo atendido por um estagiário. Gripe forte, muita tosse, talvez alguns problemas pulmonares - era o diagnóstico inicial. Interferiu:

- Entregue ele, primeiro, a D. Nita, lá na Assistência Social, para um bom banho e cuidados pessoais. Depois, deixe-o na Enfermaria para nossas observações e tratamento...

Uma semana depois lá estava o homem bem bonitinho numa nova roupa, a caminho da rua. Instruiu, antes, ao estagiário:

- Dê a ele, antes de sair, estes comprimidos...

Ao estagiário, meio incrédulo sobre a natureza da medicação, teve que insistir:

- Sei o que estou fazendo, faça ele engolir...

Em despedida, o paciente então caminhou até a portaria, mas não passou da escadaria e do jardim à frente do prédio. Intestinos barulhentos doendo, agachou-se entre arbustos, não dava para se segurar por mais tempo e procurar as privadas da enfermaria, lá no fim do corredor.

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Comentários sobre o texto podem ser encaminhados ao autor, no email miltonxili@hotmail.com  





Milton Ximenes é cronista, contista e poeta
RJ

Email: miltonxili@hotmail.com
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