16/04/2019
Ano 22 - Número 1.121



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MILTON XIMENES

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Milton Ximenes Lima



aves

Milton Ximenes Lima - Colunista, CooJornal

As pequenas aves são nossas visitantes nas manhãs e nos entardeceres, entre nossas duas varandas de sétimo andar. Na do quarto, pousam e se movimentam as rolinhas, no chão, no gradil, ou entre as plantas. Na da sala, mais diversidade: beija-flores, sebinhos, bem-te-vis, sabiás – laranjeira, sanhaços esvoaçam e pousam onde puderem. Alimentos as motivam.
Mas são as rolinhas que mais se oferecem como hóspedes, com a vinda da noite e desorientação quanto ao voo da volta aos ninhos ou árvores de pernoite. Assim, certa vez, um filhote se abrigou e dormiu entre as folhagens de uma planta suspensa; numa outra, entrou no quarto quando estávamos ausentes, não soube ultrapassar as vidraças, esperou-nos entre livros e caixas na parte superior da estante, ali dormiu, e só se retirou com o clarear do novo dia, e através do espaço que antes abrimos com o deslocamento da porta. Entretanto, foram as peripécias de um beija-flor e sua mãe, que foram nossos hóspedes por vários dias, que me deram a oportunidade de idealizar e escrever uma crônica, que abaixo segue:

O ortopedista resolveu me dar conselhos, além-remédios e vitaminas:

- Sua musculatura está dura, tensa, seu esqueleto está sofrendo com seu peso, acima da média para o seu tamanho. Vamos fazer exercícios, no mínimo caminhar. Não corra, é preferível caminhar depressa. Procure uma academia de ioga, esforce-se nos alongamentos, converse com o professor sobre seu corpo, ele vai lhe dar uma orientação, vai também ajudar a combater a ansiedade...

Gastei tênis em vários calçadões da cidade, do suadouro resultante ia para o bem-estar dos banhos frios posteriores, energia bastante para o resto do dia. A ioga me trouxe calma e a sabedoria do uso específico das ásanas para determinadas reclamações do corpo. Nas caminhadas, só descontente estava com o ar que respirava; mesmo à beira-mar, não confiava na sua pureza, carros passando perto. Descobri as caminhadas ecológicas, fiz muitas e sadias amizades. Tempos depois, com orgulho, eu apontava para as florestas do maciço da Tijuca e saboreava os nomes dos picos que vencera e donde me deslumbrara com as variadas e belas paisagens da cidade. Atravessei a baía de Guanabara, entrei por Niterói, cheguei à serra da Tiririca. Em Parati, a trilha do Corisco, antigo caminho do ouro para Minas. Em Minas, Santa Rita de Jacutinga, São Thomé das Letras, Ibitipoca, Caraça, Carrancas...e, numa tarde de domingo, quando voltava da minha quinta excursão à Ilha Grande, a mulher, que praticava ioga mas não apreciava caminhadas, veio me soprar a novidade:

- Abra com cuidado a porta do banheiro, nem acenda a luz... Tem gente nova em casa desde sexta-feira, quando você saiu para a Ilha. De tarde, bateu por aqui uma ventania danada. Eu estava na varanda quando vi alguma coisa cair daquele cajazeiro ali em frente, um troço pequeno e escuro, bem em cima do telhado da casa de cômodos. A coisa se mexia, balançava. Peguei o binóculo e tive a certeza de que era um passarinho. Fiquei preocupada, por ali passam muitos gatos. Interfonei para o porteiro daqui do prédio e o outro, que estava de folga, arranjou uma escada e me trouxe esse bicho aí, um filhote de beija-flor. Amassei uns papéis, improvisei um fundo de ninho e cobri com um pano. Fui botando água com açúcar pelo bico. Já li que isso não é alimento bom para eles, mas não havia outra saída. No domingo, pela manhã, fui à feira da Praça Varnhagen (Tijuca) procurar uma gaiola pequena, essa que tá aí. O moço lá disse que ele morreria, que beija-flor não é bicho de cativeiro. Disse a ele que não iria prender, mas reter o bichinho por uns tempos...

Olhei para minha mulher e me conscientizei de que nós, bem ou mal, tínhamos que administrar a novidade. Deixamos passar a segunda e a terça-feira. Na gaiolinha, levada de um cômodo a outro do apartamento, o pássaro sempre avisava que estava vivo, a linguinha passeando pelo bico, aceitando o improvisado néctar.

 


Torcíamos e nos alegrávamos com isto. Na quarta, resolvemos inovar. Descansamos a gaiolinha na varanda e, o que era nosso desejo, se consumou: a mãe apareceu, voejou sobre, deu nervosos rasantes, sumiu... Quando voltou, pairou no ar, intrometeu o imenso bico nas frestas da gaiola, alcançou o do filho, que vibrou as asas alegremente.


Graças! Daí em diante era aquele ritual ao amanhecer e ao entardecer. O filho se revigorou, vibrava mais o corpo, identificava a mãe, sons eram permutados. Cerca de dez dias depois começou a ensaiar voos típicos da espécie dentro do pequeno espaço, planava, oscilava para os lados. Concluímos que já tinha força e equilíbrio suficientes para a liberdade que lhe seria necessária e oferecida.

A minha mulher chamou, então, o mesmo porteiro, instruiu-o para que levasse a gaiola até o mesmo telhado e dela retirasse, com cuidado e carinho, o beija-flor, e, do cimo de uma escada, o liberasse sob os galhos do cajazeiro. Não foi preciso tanto. No meio do caminho para a árvore a mãe se aproximou, o filhote escapou a acompanhá-la e foram para onde queriam.

Provavelmente eu terminaria aqui esta narrativa com o fim da nossa angústia substituída pela satisfação íntima de ter feito um bem, uma sobrevivência meticulosamente acompanhada. Como uma história de final feliz. No máximo dela se captasse a mensagem de que o amor sempre se expande, qualquer que seja sua natureza, além dos gestos dos homens, pode chegar aos animais, que reagem de alguma forma. Esta, porém, não foi uma lenda para crianças, foi caso real, teve testemunhas, foi fotografado. E a história ainda prosseguiu, foi mais além...

Nessa mesma semana, em dois dias diferentes, enquanto se distraía com sua arte de pincéis em porcelana, a mulher foi surpreendida com voo inusitado da mamãe beija-flor, entrando, pairando, e continuando assim por toda a imensa sala, num círculo perfeito de retorno ao espaço lá fora do apartamento. Nunca fizera isso, ela só se arriscava até as flores da jardineira, lá na varanda e, às vezes, descansava nos franzinos galhos.

Parecia que ela viera, apenas, bater asas de gratidão...

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Comentários sobre o texto podem ser encaminhados ao autor, no email miltonxili@hotmail.com  





Milton Ximenes é cronista, contista e poeta
RJ

Email: miltonxili@hotmail.com
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