01/04/2019
Ano 22 - Número 1.119

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MILTON XIMENES

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Milton Ximenes Lima



PASSA TEMPO... (10)

Milton Ximenes Lima - Colunista, CooJornal


O feto, aproveitando-se do alimento do útero (barriga) da mãe, não seria o primeiro antropófago?

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Os animais são imagens do encantamento que marcam as lembranças de qualquer criança. Assim foi comigo, a lembrança é uma espécie de tesouro da infância. D. Santa, quando morávamos na rua D. Fernando, próximos da igreja de São Pedro, hoje N. Senhor dos Passos, residia numa casa situada atrás da nossa, comprida, imensa varanda à frente. Com o marido, Sr. Ivo e duas filhas, Rita e Teresa (Tetê), esta da minha idade, o que fazia a criançada dizer que era minha namorada, ocasião em que me emburrava porque ela era feinha e meio gaga. Depois de muito insistir, e ajudado pelo fato de ela querer se desapegar do local, consegui ganhar da D. Santa uma cachorrinha bonita, de pelos alaranjados. Rapidamente “Bolinha” conseguiu angariar simpatias dos meus familiares, sendo, muitas vezes, companheira de correrias e brincadeiras. Todas as tardes, quando vinha do colégio, ela me avistava lá na escadaria, atrás do prédio do Grupo Escolar Graça Guárdia (ou do ginasiano Liceu), insistentemente latia, e se aproximava, e se empinava, agitando alegremente o pequeno rabo... Às vezes tinha filhotes, os quais, com pena, dávamos.

Aí apareceu o carteiro que veio entregar um telegrama na casa de D. Aída, nossa vizinha, que povoava seu quintal com três cachorros habitualmente barulhentos e nada amigáveis. Eu mesmo fui “acariciado” pelos dentes da “Boca negra”, e, com urgência, levado para o Instituto Pasteur. Quando o homem chamou a dona da casa, a cachorrada lhe latia ameaçadoramente entre as frestas da cerca defronte à casa. Excitada, Bolinha também latiu perto do homem, no nosso quintal, sem avançar, apenas por imitação, como sempre fazia. Apesar disso, recebeu violento pontapé na cara, saindo dali ganindo de dor. Foi, depois, diminuindo seus movimentos, ficando pelos cantos, vomitando o que comia. “Dindinha”, minha segunda mãe, em vão a tratou. No dia em que ela morreu e seu corpo foi levado para ser atirado no rio, a criançada que com ela convivera a acompanhava. As águas do Itapemirim a recebeu e a engoliu, mais adiante.

Silêncios no portão lá de casa. Não mais sua figura tão amada em meus andares da infância. O vazio que se sucedeu me obrigou a, até hoje, não perdoar o causador desta tristeza, e até lhe desejando uma vida bem difícil.

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Ainda sobre animais, agora em tempos adolescentes, na casa dos meus tios no Rio. Uma curica. A gente chegava e lhe falava: - “Papagaio louro...!”, e ela concluía: “do bico dourado, purupaco!” Aprendeu nomes dos familiares: Raul, Zezé, Venga ou Lenga (que ela inventou para uma tia-avó).


Assobiava “fiu-fiu” e ria, imitando as diferentes gargalhadas familiares; miava, zombando dos gatos; arriscava o canto de algumas músicas trazidas pelo rádio. Uma delas: “A mulher do meu maior amigo, me manda bilhete todo dia,” mas não tentava continuar... (“Desde que me viu, ficou apaixonada... Me aconselha “seu” Julio Lousada”, este um consultor sentimental da época. Não podia ver a agitada garotada da vila, que não gritasse. Nesse momento, era recomendável não chegar perto, ela corria atrás da gente para dar umas bicadas. Corria atrás do Dodó, um dos cinco gatos da casa; brincava de carro, arrastando, com o bico, em diversas direções, uma tampa de lata; alegre pulava, abrindo as asas, se abríssemos o chuveiro para ela se molhar/banhar. Se passava um urubu no céu, ela virava a cabecinha para o céu e resmungava: Pruum...

Ela veio do Norte, de avião, há uns cinco anos, como presente de um rapaz trabalhador do Hospital dos Servidores à minha tia (madrinha), que o incentivara a candidatar-se a uma vaga de trabalho lá. Ontem, num certo dia de maio de 1958, ela morreu de uma infecção pulmonar, apesar dos esforços dos veterinários convocados. E sua gaiola vazia está ali, bem na porta da casa, à espera das mãos do lixeiro.

Está vazia, está vazia: Curiquinha partiu. Pobre de nós que tanto a amávamos...


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Comentários sobre o texto podem ser encaminhados ao autor, no email miltonxili@hotmail.com  





Milton Ximenes é cronista, contista e poeta
RJ

Email: miltonxili@hotmail.com
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