16/03/2019
Ano 22 - Número 1.117

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MILTON XIMENES

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Milton Ximenes Lima



Imagens cachoeirenses-ausentes...

Milton Ximenes Lima - Colunista, CooJornal


O tempo urge e ruge para mim. Nas esquinas do próximo mês de abril tropeçarei nos meus oitenta anos. Lendo Elyam Peçanha (Jornal Espírito Santo de Fato), noto que, ao encerrar sua coluna social, ele relembra o seu passado, sob a invocação “Eu sou do tempo... “

Resolvi embarcar, também, nesta oportuna e curiosa viagem. Apenas adaptei à minha idade maior, corrigindo a frase para “Eu fui do tempo...“, não me preocupando, inclusive, com qualquer ordenação cronológica, tarefa praticamente impossível, tantas são as oscilações das recordações deste pretérito viver. Algumas poderiam até evoluir, mediante costuras literárias, para crônicas e contos, mas, por enquanto, prefiro pincelar momentos através desta forma, mais rápida e direta.

Portanto, amigos e inimigos que me tentarem ler ou ouvir, compreendam estas resumidas gotas de costumes saudosos, aceitando minhas confissões cachoeirenses escondidas no

Eu fui do tempo em que:


os infantes alunos do Grupo Escolar Graça Guárdia, ao se formarem no grande pátio, em torno da grande escadaria da entrada principal, se perfilavam militarmente, tomando distância, com um braço esticado, mãos no ombro do colega à sua frente; entoavam o Hino Nacional, o da Bandeira, o da Independência, o da República, o Cisne Branco, o Avante Camaradas da Força Expedicionária Brasileira;
os alunos permaneciam de pé à entrada dos professores na sala de aula e só se sentavam quando eles se acomodavam nas cadeiras das suas mesas;
os alunos, para a escrita, levavam pequenos vidros de tinta (tinteiros), substituídos, depois, pelas canetas-tinteiros; em que levavam, também, borrachinhas acopladas aos lápis, e papéis “mata-borrões” para se socorrerem no inesperado ou desesperado exagero das tintas;
os alunos (que podiam) levavam seu lanche da hora do recreio acomodado em uma merendeira de couro pendurada no ombro, enquanto outros procuravam as sopas da “Caixa Escolar”;
os alunos mais pobres usavam o papel-invólucro de pães para, desamassado, servir de rascunhos aos exercícios escolares;
alunos poucos providos de inteligência eram denominados de “tapados”;
os alunos dos então melhores grupos escolares da cidade trocavam provocativos apelidos: os do Graça Guárdia eram chamados de “Galinhas Gordas”, os do Bernardino Monteiro, de “Bestas Magras” e os do Quintiliano Azevedo, de “Queijos Azedos”;
uma única vez, as crianças receberam lápis, gratuitamente, com a propaganda de Asthenio Bagueira Leal... para deputado estadual;
os pais, zelosos com a cultura dos filhos, tinham, em suas estantes, os dezoito preciosos volumes do “Tesouro da Juventude”, poderosa primeira enciclopédia domiciliar;
à primeira ameaça de infecção na garganta, as crianças sofriam uma embrocação de azul-metileno;
quando arrebentava a “fita” do filme projetado no Cine Central, os espectadores vaiavam, batiam os pés, forçavam as fechaduras das janelas que se abriam sobre o Itapemirim... até a nova emenda no celuloide;
antes da projeção do filme, tínhamos que acompanhar o noticiário do Jornal da Tela, os “traillers” (chamados então de “reclames”) dos próximos filmes, os inevitáveis desenhos do invencível ratinho voador “Possante, o bramante”, e, depois do filme, os seriados dos imortais heróis da época;
o cine Santo Antonio, lá no Guandu, se especializava na exibição de faroestes, aqueles em que o mocinho muito atirava, cavalgava, brigava, brigava, e o chapéu não lhe caía da cabeça... ;
nas enchentes do rio Itapemirim, os mais corajosos se lançavam desafiadoramente às águas, saltando da Ponte Municipal, enquanto remadores também se posicionavam em canoas esportivas (do Yole Clube?) ao embalo e sufoco das correntes;
só então, a enorme piscina do Liceu Muniz Freire (e Grupo Escolar Graça Guárdia) finalmente se enchia de águas provindas do cano que normalmente as descarregava no rio;
a gente acompanhava a evolução e a involução das enchentes nos quintais das nossas casas à margem, fincando, à noite, pedaços de madeira que prometiam, no dia seguinte, com sua marca líquida, expectativas de medos e alívios;
a gente acompanhava as caçambas se movimentando sobre os morros do norte, penduradas em cabos de aço sustentados por torres, levando calcário para a Fábrica de Cimento Barbará, lá na rua Moreira, início do Coronel Borges;
ao mesmo tempo, se sentia, vez em quando, tremer nossa casa, lá na rua D. Fernando 163, quando o comboio ferroviário passava por detrás do nosso quintal, levando mercadorias e materiais para a mesma Fábrica;
se assistia os jogos noturnos de basquete na quadra do “Barbará”, no mesmo local;
se viu (eu vi), lá da descida da rua D. Joana, um zepelin cruzando nossos céus;
as boiadas trafegavam por nossas ruas sob a vigilância de valentes cavaleiros (o que não me impediu de assistir, certa vez, na rua Moreira, ao pânico de uma procissão religiosa que com elas se enfileirou);
o lazer dos domingos era concentrado na Ilha da Luz, com seu parque protegido por muitíssimas árvores e com suas piscinas naturais e artificiais;
para se chegar nela, se atravessava uma precária ponte de madeira que nos fazia medo ao verificar, abaixo dos nossos pés, entre os madeirames que a forravam, as ameaçadoras águas do rio;
os motores dos dentistas que acionavam as brocas de obturações eram estimulados através de pedais, como os do consultório do Dr. Cornélio situado na galeria do Hotel Itabira, onde, aliás, ficava o único elevador da cidade; e também, mais tarde, nos consultórios do Dr. Athayr Cagnin e do Dr. Wilson Resende;
as liquidações, nas vendas de tecidos patrocinadas pela Casa Franklin, lá na rua Bernardo Horta, ressuscitavam o instinto guerreiro das mulheres consumidoras;
o Café Campeão disputava com o Café Guandu o espaço comercial e havia até, em certa época, concurso para quem conseguisse o maior número de invólucros usados para serem trocados por outros, novos, acompanhados de mais um, cheio de café;
certas padarias incentivavam o consumo de sorvetes, marcando internamente o pauzinho do picolé, para dar direito, a quem o descobrisse, ao recebimento gratuito de outro;
se contemplava chegar, lá nas montanhas do lado sul, entre Bahiminas e Sumaré, o tranquilo trenzinho da Estrada de Ferro Itapemirim proveniente da praia de Marataizes, mas que, aos domingos se agitava, com um povaréu aboletado até nos tetos dos vagões, e que, também, durante a semana, premiava nossos colegiais com a primeira visão daquele “rio” tão imenso: o verde e castanho mar;
na viagem deste trenzinho, ele parava na estação Paineiras e o maquinista aguardava os passageiros avançarem nas pamonhas e canas de açúcar, para, só depois, prosseguir com a viagem;
a criançada alegre recepcionava e acompanhava, pelas ruas, os atores e animais do circo que chegava e, depois, nos espetáculos, admirava a habilidade e perícia dos equilibristas, a atuação dos animais, e ria das trapalhadas dos palhaços;
frequentei aulas de datilografia, com D. Olga Braga (particularmente) e com D. Ucha (escola situada na rua D.Joana);
os meninos se distraíam com bolas de gude, piões, jogo de porcas (tempos de chuva), “papagaios” e as improvisadas “peladas”; as meninas, com brincadeiras de inspirações domésticas, correrias (piques), amarelinhas etc;
os amiguinhos mais pobres sempre nos presenteavam, nos aniversários, com sabonetes, estrategicamente acobertados (e valorizados) com papéis coloridos;
era moda cortar o cabelo “à Príncipe Danilo”; em que, nas vazantes do rio, era costumeiro saltar de pedra em pedra e chegar à ilhota defronte, onde, colhendo bolebas de mamona (pequenas frutas), se iniciava uma batalha de arremessos;
os funerais/enterros eram realizados através das ruas, com acompanhamento a pé, caixão lá na frente, abrindo o cortejo, rumo ao único cemitério, enquanto nas calçadas as pessoas se postavam respeitosamente, os homens até tirando os chapéus;
o campo de tênis do Semprini, lá na rua D. Fernando, era a alegria dos poucos simpatizantes do esporte nos domingos, pela manhã, e nas quartas-feiras, à noite;
nos carnavais, os bonecos patrocinados pelo Clube Cruzador Brasileiro, a imensa Babiana entre eles, saíam da rua Nova e D. Fernando (dos Semprini) rumo ao desfile na praça principal;
na Sexta-Feira da Paixão, o silêncio no ar e o comedimento nos gestos eram cultivados, só se ouviam músicas suaves, a maioria clássicas, e alguns homens procuravam, até, não fazer a barba;
se realizava, na Semana Santa, a procissão do Encontro, em que a imagem de N. Sr. dos Passos saía da então Matriz de São Pedro (rua Don Fernando) e a de N. Sra. das Dores lá da igreja de Santo Antonio (Guandu) e se encontravam na praça Jerônimo Monteiro, ponto, também, do incentivo e entusiasmo de oradores sacros, geralmente vindos de outras paróquias maiores;
as festas juninas eram particulares e públicas, avançando na noite com seus vários divertimentos, entre danças e fogos de artifício (busca-pés, foguetes, rojões), saltos sobre a fogueira, caminhadas sobre brasas;
nas ruas da infância desfilava a figura do grande e andante Tenerá, vestido tal cangaceiro, acompanhado dos seus cachorros, e que apregoava, com seu megafone, nomes e promoções de algumas lojas, tornando-se, a meu ver, pioneiro veículo de propaganda da cidade;
aquele sorveteiro, o “seu” Eduardo, vindo lá do bairro Coronel Borges, arrastava sua carrocinha e apregoava: “Olha o sorvete e o picolé!”, e a quem as crianças, escondidas nas casas e nos quintais, completavam com um “É de leite de mulher!”;
durante certo tempo, carroças médias abrigavam leite e o vendia (Selita), com medidor de vidro, pelas ruas;
a Rádio Cachoeiro (“De Cachoeiro para o mundo”, repetia) tinha um programa diário chamado “Às suas ordens”, em que as pessoas, com dedicatórias previamente escolhidas, se ofereciam músicas, principalmente nos aniversários;
em um programa matinal dominical Roberto Carlos exibia seu promissor gogó nas músicas, entre outras, “Olinda, cidade eterna” e “A fonte a correr, chuê, chuá... (não me lembro do título);
algumas pessoas viram o mesmo Roberto, mesmo com seu problema físico, dominando e conduzindo uma bicicleta;
as meninas dividiam suas simpatias e antipatias radiofônicas entre as vozes da cantoras Emilinha e Marlene;
a nossa moeda (réis) era muito valorizada, a ponto de servir de troco dos óbolos doados à igreja (em saquinhos);
as famílias, em momentos vespertinos, traziam suas cadeiras para as frentes das suas residências e iniciavam longos e tranquilos papos, enquanto os filhos brincavam livremente pelas imediações;
pelas janelas da Escola de Comércio, ao nível da rua Vinte e Cinco de Março, a gente se defrontava sempre com as figuras dos famosos educadores Alfredo e Aurora Herkenhoff;
sacudidos por notícias alvissareiras, partiram de Cachoeiro veículos e caravanas com destino a Urucânia, Minas Gerais, onde o Padre Antonio maravilhava a todos com seus milagres;
superando os vendedores ambulantes com seus costumeiros balaios de produtos hortigranjeiros e frutíferos às costas de cavalos e burros, o japonês Sukessa Nakao encostou seu caminhão na cabeça-sul da ponte municipal e passou a monopolizar, enquanto esteve na cidade, a venda de grandes e belíssimos tomates cultivados nas terras dos Athayde;
as estampas que acompanhavam o sabonete Eucalol (trazendo, no verso, informações culturais) viravam objeto de curiosidade e troca entre os jovens estudantes;
também os sabonetes Lifeboy ofereciam prêmios a quem encontrasse uma chave no seu interior;
a divulgação dos próximos filmes a serem exibidos na cidade era na forma de papéis-cartões, onde “matinées” e “soirées” eram cuidadosamente especificadas;
as revistas Tico-Tico e Vidas Infantil e Juvenil foram preferências de crianças e professores, antes da chegada dos “agressivos” (à época) gibis;
apareceu a moda do uso das bicicletas, revolucionando a mobilidade casa-escola das crianças e sendo introduzidas, pelos mais ricos, nos festivos desfiles escolares dos Dia de Cachoeiro e da Independência;
se ouvia a passagem inesperada e barulhenta da motocicleta do Murilo Sampaio, com a inédita acomodação lateral de um passageiro;
os guarda-chuvas eram chamadas de “sombrinhas”, e até, nos agressivos verões, de guarda-sol;
as crianças tinham medo da grande imagem de N. Sr. dos Passos, lá num canto escuro da Matriz (à direita), de cuja cabeça desciam enormes fios de cabelos naturais que lhe encobriam o rosto;
nos casamentos, ainda não existentes os “flashes”, o (a) fotógrafa (D. Amélia) acionava disparadores remotos a cabo, provocando um clarão produzido por pós de magnésio inflamáveis, sucedido por uma fumaça escura que se elevava no ambiente! (Indagação toda minha: isso poderia explicar os olhos espantados dos noivos na maioria das fotografias?);
se fundou um Aero-Clube;
os aviões da NAB - Navegação Aérea Brasileira começaram a sobrevoar a cidade, facilitando ligações com Vitória e Rio de Janeiro;
a utilização dos trens da Estrada de Ferro Leopoldina Railway era o mais procurado meio para se chegar ao Rio de Janeiro, então capital federal, através das composições chamadas “expresso”, que partiam, diariamente às 5h30 da manhã, e as do “noturno”, com carros-leitos, que vinham de Vitória, em dias determinados, alcançavam a cidade às 16h30 horas, e seguiam para o Rio, após procedimentos de embarque e desembarque de pessoas e mercadorias;
nas únicas linhas de ônibus municipais que faziam então os itinerários Ilha-Coronel Borges e Aquidabã-Bahiminas, o “trocador”, quando chegavam no último ponto, se levantava e alertava: “ - Ponto final, faz favor as fichas!” (...de plástico-sistema de controle dos pagamentos e passageiros da época);
jornaleiros jovens apregoavam jornais da cidade e os do Rio (um dia de atraso, porque vinham de trem);
para se comunicar com pessoas em outras cidades, tínhamos que acorrer ao único prédio da Telefônica, lá no alto da rua Costa Pereira, onde, sentados, aguardávamos o chamado da telefonista para ingressar e falar numa cabine;
o trânsito de carros era, nas noites de domingo, após a última sessão de cinema, impedido na Praça Jerônimo Monteiro para permitir o livre passeio, em seus arredores, de ricos e pobres, incentivando, muitas vezes, aproximações sentimentais...;
personagens de rua, desassistidos, mendigavam esmolas às casas, somente nos sábados;
os namorados noturnos “mais assanhados” eram convidados a passear no carro da polícia, apelidado de “Mamãe carinhosa”, até... as dependências “mais calmas” da Delegacia...

Ponto possivelmente final: não vou lhes fornecer o número da minha sepultura, para, como costumavam no meu tempo, os conhecidos nele apostarem no jogo do bicho!

Minha cautela, gente: já procurei saber como é essa tal de cremação! Só sei, hoje, que é um calor de matar!

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Milton Ximenes é cronista, contista e poeta
RJ

Email: miltonxili@hotmail.com
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