10/08/2012
Ano 16 - Número 799

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MILTON XIMENES

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Milton Ximenes Lima


 UMA CERTA MANHÃ
 

Milton Ximenes Lima - Colunista, CooJornal


Certo é que aconteceu num desses dias em que a gente amanhece esquizofrenicamente de bem com a vida. Os pulmões se regojizam de ar, os dedos ensaiam ternuras sobre as cabeças das crianças que brincam, os braços desejam abraços, da luz do momento fluem energias múltiplas, vontade de fazer muitas coisas, enfim, o mundo está belo, embora o celeste nublado. Até a paisagem humana, recentemente desperta, parece atraente, o parque de frondosas árvores é acolhedor, e o jardim, próximo, nos empresta as variadas cores das suas flores. Momentos de êxtase para atentos e sensíveis visitantes.

Poderia estar em casa, confortavelmente instalado numa cama ou numa poltrona, aguardando o aroma gostoso e energizante do café. Deu uma cisma, porém, resolvi sair, e, de roupas leves e em jejum, comprei o jornal, me acomodei naquele banco à beira do lago.

Momentos depois, pressenti-me acompanhado. Algo às costas, instinto de defesa me fez virar. Sorriso a meio caminho, olhos fundos e inchados, rugas na testa gordurosa, grande nariz, roupa maltratada e suja sobre o corpo, cheiro desagradável, um homem mostrava-se também interessado na leitura. Deu pequenas e nervosas risadas e sua mão direita e respectivos dedos, bem por cima do meu ombro, evoluiram no sentindo de uma notícia:
- Outro atropelado... Foi aqui perto... eu vi, tava bebão!

Balancei a cabeça, murmurei um “hum-hum”, só para concordar, se livrar. É, o desconhecido sabia ler, devia esconder uma boa história de vida, mexeu momentaneamente nos meus instintos de curiosidade literária, mas me contive. Diante da pacífica leitura que até ali eu fazia, ele era, vagabundo ou bêbado, sei lá, um intrusão. E, logo depois, já ia abusando, apontando outras ocorrências, fazendo comentários. Desafinei, suavemente:
- O que você quer, cara? Alguma ajuda, um dinheirinho?
- Não, moço, queria só o jornal, tô esperando o senhor jogar fora... – esclareceu.

De maldade, dei-lhe o suplemento imobiliário. Queria testá-lo, mas, para surpresa minha, alegrou-se e se afastou, primeiro lentamente, depois, mais apressadamente, na direção da alameda mais bem arborizada do parque. Agachou-se, sumiu sob as fartas moitas.

Imediatamente me levantei, dobrei o restante do jornal, joguei-o no grande e amarelo latão de lixo. Tentei não me impressionar, mas reconheci que todo aquele romantismo pincelado pela promissora manhã se desvanecera.

Apesar da, instantes depois, inesperada visita do colibri que esverdeou de malabarismos a janela do meu olhar, antecipando seu mergulho para o abismo-coração da próxima flor...

Então, quando alcançava o portão do parque, a chuva pediu licença e o peso dos seus pingos fizeram as folhas, em murmúrios, reclamar...



(10 de agosto/2012)
CooJornal nº 799



Milton Ximenes é cronista, contista e poeta
RJ

miltonxili@gmail.com
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