31/07/2010
Ano 13 - Número 695


ARQUIVO
MILTON XIMENES

 

Milton Ximenes Lima



EM SUFRÁGIO DA ALMA - (PAI)

 

Milton Ximenes, colunista - CooJornal

Reconheço que, quando aconteceu, andava eu envolvido por cansaço sem explicações óbvias. Pessoas e fatos me irritavam. Pessoas, mantinha-as longe. Fatos, negava que eles existissem, como se fossem ameaças à preguiça de enfrentá-los. Desconfiava que, se assim continuasse, ia pintar uma depressão no meu espaço. Até pensamentos negativos abafavam os positivos...

Depois, ruídos dentro do ouvido, pareciam zumbidos de motor girando eternamente, uma vibração constante na cabeça. Temi não dormir por causa deles. Certa manhã, ainda, sozinho na sala, jornais sob olhos, a percepção auditiva perfeita das vozes de um coral de monges...

E, naquela noite, desviei a atenção de um livro de ajuda para a porta de entrada do apartamento, onde um vulto parecia se esconder na semi-escuridão. Reforcei-me com meus óculos de míope e aí tive a certeza de que aquele rosto de pele jovem, cabelos e bigodes bem tratados, me levavam a uma foto do álbum de família: o pai. Perdi-o muito cedo e outra lembrança fisionômica minha memória não captou. Pequeno medo se insinuou, a tensão me fez reajustar o corpo na poltrona, e dali não mais me movimentei. Esperava uma mensagem... por exemplo, um sorriso, um gesto. Nada... O vulto se esvaiu quando, já refeito do pequeno susto, procurei o interruptor da luz maior da sala.

Meio comprimido de um calmante me ajudou a bloquear a emoção da aparição, que guardei só para mim.

Passei, no dia seguinte, na Basílica N.S. de Lourdes, aqui perto, em Vila Isabel, dediquei demorada oração à alma do meu pai. Seguia, assim, procedimentos da família quando os antepassados se faziam lembrar em sonhos. Dei-me por satisfeito, como cumprisse uma promessa. Rezei, tá rezado, acabou, tá acabado, assunto desligado.

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Mas o homem retornou, bem entre as folhagens da varanda. O mesmo rosto do álbum, mas sem expressão, como se estivesse ali só para me rever, o homem que fora seu filho, sua primeira criança, a quem, conforme minha mãe, gostava de exibir aos conhecidos, nos passeios pelas calçadas do bairro Independência, lá em Cachoeiro. Esperei, mais uma vez, nada de mensagens... Tomei coragem, levantei-me rápido e parti na direção de imagem... Inútil, ela novamente se diluiu. Cheguei a pensar que o meu cérebro tivesse projetado antigo desejo meu, consciente ou não, de ressuscitar meu pai, que morrera longe de casa, lá em Cabo Frio, ninguém vira seu corpo, e a mãe não sabia explicar direito a nós, crianças, quando o papai retornaria.

Um colega de trabalho ainda sugeriu:
-Venha até o meu Centro, lá tem um irmão que recebe, psicografa...

Na minha indecisão, ainda acrescentou:
- E quanto a você, é medium e não sabe, só precisa se aperfeiçoar.
- Tá bem, ta bem! Me dê um tempo...- negaceei.
 
Na verdade, queria, com calma, formar convicção sobre a origem daqueles acontecimentos. Vida depois da vida era assunto que há muito me interessava. Na estante rebusquei os livros há muito já lidos, desde o Livro Tibetano dos Mortos, o do Yogue Ramacharaca, até os mais recentes, de autores médicos, Drs. George W.Meek e Raymond A. Moody Jr. cujos depoimentos, e dos membros de suas equipes, levavam a crer, quer na mesa de operações, quer na assistência a idosos, muitos deles pacientes terminais, que outra vida, outro mundo existia além da morte. Nas cirurgias, viu-se a ressurreição da energia ao corpo já considerado perdido, e esses pacientes mudando de comportamento após a experiência deste retorno. Nas enfermarias de idosos e terminais, estes de qualquer idade, eles, em determinados momentos, passavam arregalar os olhos e a balbuciar nomes, posteriormente identificados, de pessoas falecidas da família. Aliás, esta última hipótese já me fora transmitida por histórias familiares e, eu mesmo acompanhara um caso recente. Por isso, minhas desconfianças se fortaleceram, tornaram-se uma idéia-realidade: meu pai viera me avisar que estava próxima a minha partida. Não me desesperei, tinha leituras e convivências que me apascentavam. Tinha um Deus-Presença ao meu lado e se este era o seu desejo, para que me revoltar? Deixei, também, confidências nos ouvidos de um analista, que muito me cativou com o seu método de ouvir muito, só me interromper com perguntas inteligentes e nunca me impor idéias e procedimentos de vida. Depois, paralelamente, sem alardes, comecei a planejar e executar atos que julgava necessários. Antecipei os exames médicos preventivos anuais e, apesar dos bons resultados, insistia por outros, mais detalhados. Um “saco”, eu era e não percebia, de preocupações! Dei um pulo até o cemitério do Caju, não gostei do estado de conservação da sepultura, mandei melhorá-la. Estabeleci um quadro de controle anual de dívidas, felizmente poucas e necessárias. Há três anos meus salários não sabiam o que era reajuste, enquanto as despesas cresciam de valor. Liquidei meu empréstimo hipotecário na Caixa Econômica, dei sorte aí porque estavam fazendo uma promoção para zerar empréstimos antigos. Automóvel, mais de cinco anos de uso, sem problemas. Enfrentei dois gavetões de papéis e documentos pessoais e profissionais, e objetos sem serventia. Comprei uma enorme pasta, nela inseri relações de endereços e telefones de pessoas que ajudariam, tão logo me despedisse; de seguros de vida e outros; colecionei documentos para a abertura do inventário, inclusive designando advogado amigo; elementos para o imposto de renda, firmei autorização para cremação e até redigi o aviso fúnebre do evento e da missa, para publicação em dois jornais.

Minha mulher estranhava aquelas arrumação e destruição de papéis, dizia-lhe que estava aproveitando uma licença médica que eu conseguira, para botar a vida em dia. Doei roupas usadas, calçados e tênis velhos. Desempacotei camisas, bermudas, lenços e meias, muitos deles presentes de aniversário, e passei a usá-los imediatamente. Meus dois filhos, já universitários e com seus programas semanais próprios e definidos com os colegas de faculdade, só deviam estranhar aquele pai tão caseiro de repente aproveitar mais os fins de semana e sumir com a mãe em viagens turísticas. Aliás, para essas despesas, trouxera estratégica e paulatinamente, para a conta-corrente conjunta, os valores de uma pequena poupança. Brincavam e sorriam misteriosamente entre eles, me pareciam felizes com essas escapadas dos pais, viam a mãe mais feliz, os pais não pareciam os estranhos de ontem. Eu mesmo sentia, aos poucos, que a casa parecia mais energética, mais vozes se comunicando. E voltando ao trabalho, me sentia diferente, mais comunicativo, mais alegre.

E eles não sabiam!...

Cansei, um dia. Três anos de espera para a tal “última viagem”! E o sacana do meu pai sem reaparecer, sem dar um sinal! Andei tentado a procurar o Centro do meu colega. Pensando, pensando, descartei a opção, meus problemas estavam aqui, neste mundo. Conclui que, naquela época, andava realmente deprimido por vários motivos, todos os obstáculos de vida iam se acumulando sem a desejada solução imediata. O longo e sofrido desgaste do casamento, o exercício da profissão como fuga, ocupando muito espaço nos meus dias, desorganizando compromissos pessoais, familiares, negociais, fatos que antigamente tinha sob cuidadoso controle. Tudo isto, enfrentadas e cessadas as preocupações, foi sumindo. Temores foram superados de uma maneira simples, sem prévias programações para enfrentá-los neuroticamente, e agora estou curtindo uma quase tranqüilidade, que me veio espontânea, livre das viciadas imposições psicológicas de antigos hábitos do viver.

Meu pai, finalizo, viera, verdadeiramente, me anunciar, não os caminhos da morte física, mas os da morte dos medrosos procedimentos impensados suficientemente, sugerindo, assim, um recomeço de vida. Por isso estarei, daqui a pouco, passando pela mesma Basílica aqui perto, e deixarei agendada a celebração de uma missa por sua alma. Nem minha mãe, nem minhas irmãs saberão. Estarei lá solitário e solidário. É assunto exclusivo entre pai e filho, ou melhor... entre filho e pai...

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Versão inicial publicado na antologia “Pai, um amigo, um herói” organizado pelas Litteris Editora e Casa do Autor Editora, em 200l.
Publicado da Revista da Academia Cachoeirense de Letras nº 18, ano de 2005, com acréscimo de um parágrafo.
Revisão: 08.05.2009



(31 de julho/2010)
CooJornal no 695


Milton Ximenes é cronista, contista e poeta
RJ

miltonxili@gmail.com

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