02/06/2007
Ano 11 - Número  531

ARQUIVO
IRENE SERRA


 
Irene Serra  
  
 

Contraponto

 

Lá vem a charrete, vagarosamente. Os cascos da mula batendo nos pés-de-moleque irregulares, ecoando longe na rua. No mais, silêncio. E frio, muito frio!

Passa da meia-noite e o carroceiro, sorriso sem dentes, pele enrugada, demonstra alegria “pilotando” seu veículo. Pára, afaga o pescoço da mula e salta. Pega a encomenda que deixaram em frente da casa, coloca-a suavemente na carroça, tentando não fazer barulho. Sobe e faz novo afago na companheira, que logo segue sua caminhada. E vão assim, de casa em casa, numa cumplicidade mútua que só anos de amizade pode trazer.

Depois de andar pelos quarteirões, carroça cheia, o lixeiro dá por completada sua tarefa e retorna ao sossego do seu lar, não sem antes recolher o embrulho deixado em sua própria porta. Beija os filhos adormecidos, dá ração ao animal, toma um café quente e trotam para o aterro sanitário, afastado da cidade. Duas vezes por semana, com chuva ou luar, não interrompe sua rotina.

De manhã cedo, passa o jardineiro que, com sua estranha vassoura, vem varrendo as folhas e flores que caíram pela calçada. Há dias em que são tantas que parece que as árvores deitaram seus galhos no chão.

Depois dos montes formados, o jardineiro os calca bem no fundo de sua carroça. Verdade seja dita, não tão charmosa quanto a do lixeiro. Já não há beleza naquela profusão de flores, assim como falta encantamento aos gestos do jardineiro. Talvez se o lixeiro é quem as recolhesse, ainda sorrissem.

Um, com flores na mão, não sente seu perfume, não admira a beleza que delas ainda emana. E o burrico apenas espera que o peso que carrega seja suficiente para começar a andar.  

Outro, em  meio ao mau cheiro, sente o palpitar da vida, participa um pouquinho de cada família, conhecendo a todos pelo nome. Muitas vezes observa-se uma janela ser aberta apenas para lhe darem boa noite. É a resposta ao amor que, tão espontaneamente, sentem ser oferecido.

E sempre será assim, em qualquer lugar. Nunca esquecemos um gesto, um carinho recebido na hora precisa.



(02 de junho/2007)
CooJornal no 531


Irene Vieira Machado Serra
professora, foniatra, editora da Revista Rio Total
RJ 

irene@riototal.com.br