05/08/2006
Ano 10 - Número  488

ARQUIVO
IRENE SERRA


Irene Serra  
  

Faqueiro de alpaca

 

Lá estava o extraordinário faqueiro, guardado em uma caixa forrada de veludo azul real. A coisa mais linda do mundo! Nada existia como aquelas flores trabalhadas no cabo, que a deixavam fascinada. Em imaginação, colocava-as em vasos, arrumava os raminhos para lá e para cá, examinando, embevecida, sua obra de arte. De vez em quando, dava uma cuspidinha para polir onde seus dedos haviam deixado marcas. Alpaca! O que seria alpaca? Se perguntasse, todos saberiam que mexeu onde não devia. Então, nada perguntava.

- Menina, tira a cara de dentro deste armário. Vai estudar! Já fez o dever de casa? Estudou piano? Já terminou a lição de inglês? - dizia a empregada amiga, antiga na casa.

Cônscia de seus deveres, boa aluna, não gostava quando davam pitaco para que estudasse. Era sexta-feira, não tinha aula no sábado e o pai, compreensivo, lhe dera consentimento para ter estas tardes livres. Adorava ler romances - daqueles mais que água com açúcar, onde se colocava no papel da heroína, da amada, da deusa. Sonhar era tão bom!

De vez em quando, o faqueiro voltava-lhe à mente e ia dar uma espiadinha. "Que brilho lindo ele tem! É tão diferente do que a gente usa todo dia. Por que não colocamos esse de florzinha para enfeitar a mesa, sempre?".  A colher quase não lhe cabia na boca, o garfo de dentes imensos parecia ser para um gigante. E isso, ao invés de assustar, causava-lhe ainda mais impacto, deixando-o único. "Como fizeram esse desenho em relevo e baixos? Que mistério! Eu passo, passo o palito, e não marca nada. Passo, passo a ponta do compasso, e também não consigo nada!"

Chegando o Dia dos Pais, lá se vai a relíquia para a mesa. A mãe, desorientada, percebe que o faqueiro, outrora dado por uma de suas irmãs e guardado com tanto carinho, está todo arranhado. Chama empregada, faxineira, passadeira - e mais não chama porque não tinha - dando uma bronca geral pelo descuido. E como sabia bronquear! Ninguém levantava os olhos ou respondia! A menina, esta estudava piano, bem quietinha, ignorando a confusão: inventara que tinha uma audição e ainda não sabia o programa de cor.

O tempo foi passando e o encanto do faqueiro se desfazendo. Até que um dia, esquecido de vez. Quando dele se lembrou, já haviam lhe dado outro destino que ficar guardado no armário e exposto somente em datas festivas. Desaparecera!

Há poucos meses, ganhou da tia do marido um faqueiro... de alpaca, igualzinho àquele da sua mãe, com as mesmas lindas flores! Com que emoção e cuidado o segurou, deslizando seus dedos nos talheres, um por um, flor por flor. Era como se dedilhasse, ao piano, uma canção de ninar, um soneto de amor à mãe e à tia.

Neste momento, veio-lhe, então, aos borbotões, a lembrança do porquê tanto gosta de salpicar flores bem pequenas, em tudo. Saudade!



(05 de agosto/2006)
CooJornal no 488


Irene Vieira Machado Serra
professora, foniatra, editora da Revista Rio Total
RJ 

irene@riototal.com.br