21/05/2004
Número - 369





Irene Serra  
  

TROPEL. ATÉ QUANDO?

 

Começamos a ouvir seu rumor à distância. Rapidamente vem se aproximando e o som como que passa por cima de tudo, esmagando-nos. Vem e vai com uma freqüência tal, que quase podemos dizer o caminho que percorre. E essa continuidade, sem descanso, traz inquietação e quase desespero. Será uma manada de búfalos, fugindo de algozes caçadores? Cavalos alazão puro-sangue, excitados com o cio da fêmea? Ou mesmo carroças da época da colonização do oeste norte-americano, competindo para serem as primeiras a tomarem posse do terreno?

Quando se afasta, temos a nítida impressão de estarmos em meio à poeira, abanando xales e chapéus, cobrindo o rosto com lenços.

A velha, quase caduca, exclama: - Será o fim do mundo?!

A criança, sempre pronta a novas brincadeiras, grita: - Vamos, também, brincar de mocinho e bandido?

O adolescente, massacrado com as recentes catástrofes do Rio, pergunta: - O morro está descendo para o asfalto?

E o tropel continua diuturnamente. Com o sol claro, movimento nas ruas, barulhos corriqueiros da vida de uma grande cidade, conseguimos aturá-lo. Mas, madrugada a dentro, é uma agonia sem limites, ainda mais que, geralmente, vêm acompanhados de música, TV, vozes e sons não abafados. Mas, nesta madrugada recente, a sinfonia foi completa com rec rec rec, rich rich rich, rec rec rec, como se estivessem serrando, lixando, consertando algo. Um olhar ao relógio mostra que passa de meia-noite. Outro olhar, ainda é uma e meia... E assim vai até a exaustão, a noite tornando-se lenta, angustiante.

O despertador toca. São 5h e o silêncio agora impera, mostrando que a caravana descansa. Para os demais, é um novo dia de trabalho! Um dia certamente improdutivo, sem realizações, com a marca do cansaço de mais uma noite mal dormida, a saúde se consumindo! Não adianta brigar com o travesseiro, pois não se pode atrasar o trabalho, necessário para assegurar um lar tranqüilo e onde se possa descansar. Tranqüilidade? Descanso? Será isso ainda possível?

Após a labuta exaustiva, inúmeras falhas de atenção e memória, novamente o retorno a casa. Logo as aves encontram o abrigo das árvores para se protegerem de outra noite fria e chuvosa, cães e gatos vão se aconchegando em almofadas e tapetes. Em meio à escuridão, brilha a esperança de uma madrugada silente. Sonho vão! O tropel recomeça, com recrudescente fúria, seu ir e vir.  Até quando?


(21 de maio/2004)
CooJornal no 369


Irene Vieira Machado Serra
professora, foniatra, psicóloga, editora da Revista Rio Total
RJ 

irene@riototal.com.br