01/10/2021
Ano 24 - Número 1.242
FREI BETTO ARQUIVO
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Frei Betto
RITUAIS PARA A FELICIDADE
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É preciso
saber enxergar um palmo além do chão, da parede, do teto ou mesmo das
convicções que nos norteiam. Tudo depende de nossa cabeça. Somos, como seres
humanos, aquilo que está gravado em nossa mente – ideias, noções, fantasias,
impressões.
Se fomos educados na crença de que há pessoas superiores a
outras devido à cor da pele ou nos deixamos convencer, pela publicidade, que
pilotar um carro a 300 km/h é mais nobre que lutar para combater a fome, então
nossos atos serão regidos pelo racismo ou pelo culto aos ídolos do consumismo.
No Ocidente, avançamos em ciência e tecnologia e retrocedemos em valores
humanos e espirituais. Atulhados em grandes cidades, trancafiados em
apartamentos ou em casas cercadas de muros e prédios por todos os lados, já
não contemplamos a natureza. Perdemos o silêncio do indígena que caminha pela
floresta em busca de caça e distingue o canto dos pássaros. Ou do viajante que
em seu cavalo ou carroça se deixa inebriar pela variedade de tons das encostas
e plantações.
Vemos sem olhar, escutamos sem ouvir, falamos sem medir o
peso das palavras. A vida, como mistério, declina em nossa falta de
sensibilidade. O pragmatismo nos induz, célere, ao rol dos ansiosos, a
antessala dos infartados, à mesa dos obesos que engolem sem mastigar.
A
tradição judaica ensina-nos um conjunto de deveres – as mitzuot – que ajudam a
impregnar-nos da presença divina. “Nós nos exercitamos em conservar nosso
sentimento de admiração, recitando uma oração antes de tomar o alimento”,
escreve A.J. Heshel. “Cada vez que bebemos um copo d’água recordamos o eterno
mistério da Criação. (...) Quando desejamos comer pão ou fruta, ou então gozar
de agradável fragrância ou de um cálice de vinho, ao saborear pela primeira
vez a fruta da estação, ao contemplar o arco-íris ou o oceano, ao observar as
árvores em flor, ao nos encontrarmos com uma pessoa douta no conhecimento da
Torá ou na cultur a leiga, ao receber notícias boas ou más, foi-nos ensinado
invocar Seu grande nome e nossa consciência dele” (Dio alla ricerca dell’uomo,
Turim, 1969).
Na liturgia cristã, os gestos são lentos para que se
permita aprofundar o espírito: o vinho derramado no cálice, as ondulações
suaves do canto gregoriano, os joelhos dobrados em sinal de adoração ao
Senhor. Isso vale para o conjunto da vida. Na relação com o alimento usufrui
melhor quem faz da refeição, celebração. Sem pressa ou preocupações. O que
importa não é o prazer, é a felicidade.
Sentir os atos mais vulgares
como aventura espiritual é um desafio proposto pelas religiões orientais. Um
ocidental enche de água o copo sem ouvir o murmúrio do líquido, enquanto a
cabeça permanece distante daquele momento. Um oriental instruído na sabedoria
milenar sabe ser aqui-e-agora: copo, água, sede, gesto e atenção formam um
todo e favorecem a harmonia interior.
O sábio não corre atrás do tempo
nem se deixa arrastar pelo ritmo do relógio. Ele é senhor do tempo. Em suas
atividades nunca submerge, pois se comporta “como a cortiça na água”, como
sugere São João da Cruz. Ele aprendeu que só o Absoluto e suas expressões – as
pessoas e a natureza - valem a pena. Tudo mais é relativo e, como tal, não
merece tanta importância.
Frei Betto é escritor, autor de “Comer como um
frade – divinas receitas para quem sabe por que temos um céu na boca”
(José Olympio) e Minha avó e
seus mistérios” (Rocco), entre outros livros. twitter:@freibetto
http://www.freibetto.org/
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