16/05/2021
Ano 24 - Número 1.222




ENÉAS ATHANÁZIO
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Enéas Athanázio


Crônicas Intimistas

Enéas Athanázio - Colunista, CooJornal



A crônica é um gênero literário considerado leve, o que não significa que seja fácil. Nela, o autor tem as antenas ligadas para captar os temos “cronicáveis”, fiapos de vida às vezes mínimos, para transformá-los em belas páginas literárias. Rubem Braga chegou a usar o voo de uma borboletinha amarela, no centro do Rio, para produzir uma de suas mais belas crônicas.

Raquel Naveira, escritora prolífera e atuante nos periódicos destinados às letras, em seu livro “Leque Aberto” (Editora Penalux – S. Paulo – 2020) buscou caminhos diferentes e criativos nas crônicas que reuniu no volume. Tomando como ponto de partida velho leque encontrado nos guardados da mãe, distribuiu os textos em capítulos que melhor representam seu conteúdo: abre-se o leque, as hastes do leque, a renda do leque, os adornos do leque, fecha-se o leque, o mofo do leque e epílogo. Nas crônicas ela aborda os mais variados temas, inclusive filosóficos, psicológicos, históricos e outros, revelando-se sempre uma escritora erudita e bem informada nos mais diversos campos do conhecimento. Confesso que li o livro de ponta a ponta, contrariando a regra que aprendi de que a crônica deve ser lida uma a uma para bem saborear e reter seu conteúdo.

Chamou minha atenção em particular, neste livro, o caráter intimista de muitas crônicas, escritas com franqueza e sinceridade, como se a autora desejasse fazer confissões íntimas, revelar o que vai no fundo de sua alma, talvez procurando livrar-se de pensamentos pesados à maneira de quem se submete à psicanálise e, deitada no divã, coloca-os para fora. Por outro lado, é constante a busca do autoconhecimento.

No correr da leitura começam a despontar os agrados e desagrados da cronista. A vaidade avulta entre estas. “Vaidade de vaidades! É tudo vaidade! – escreveu o rei Salomão, por ela lembrado. E prossegue: “Confessemos o quanto somos vaidosos. O nosso cuidado exagerado com a aparência. O desejo de atrair admiração e elogios. A necessidade de ter a própria existência reconhecida.” Por desagradável que seja, a vaidade está em toda parte e os que “se acham e têm certeza” são cada vez mais numerosos.

Em outra passagem a autora confessa que é tomada do mesmo ímpeto deambulatório de Lima Barreto que palmilhava sem cansaço as ruas cariocas. Andar é um de seus prazeres. “Sou da estirpe dos andarilhos, – escreveu ela - dos peregrinos, dos forasteiros. Ando bem e rapidamente pelas vias do tempo. Sinto-me sempre estrangeira. Não caibo aqui, mesmo sendo minha terra, mesmo sendo meu destino. E avanço, adianto-me com o peito para a frente, navego estendendo velas brancas. Não posso parar. Parar não paro.” Faz-me lembrar de Neruda, que sonhava em percorrer todas as estradas do mundo.

Mais adiante ela confessa que se fosse flor seria uma margarida. Depois navega com a margarida nas lembranças de criança, nas lendas, nos fatos da vida, nas línguas, nas artes. A beleza da flor e seu significado. E conclui: “Beleza e bondade encantam e mudam as circunstâncias difíceis (ainda acredito nisso).”

Considerando a avassaladora presença do mal e a brutalidade reinante nos dias de hoje a autora escreve uma página dura mas realista. “Estamos leprosos, cheios de feridas emocionais que nos isolam do convívio com nossos semelhantes. A lepra penetra as raízes nervosas e faz com que não tenhamos mais sensibilidade. Estamos cativos de nossos erros imundos, negando a verdade. Não sentimos mais a presença do divino em nós e no outro. É preciso clamar para que as cascas sejam retiradas e voltemos a ter compaixão. Livremo-nos desse mal bruto, que nos cega e nos dá aspecto de leões. Que caiam as escamas e cogumelos de nossos olhos. Que possamos ver.”

Para não me estender além do razoável, registro alguns pensamentos esparsos da cronista. “O teatro e a peste são benfazejos porque fazem cair as máscaras e põem a descoberto o quanto somos pobres, miseráveis e nus” (p. 106). “E eu me encontrei com Ricardo Reis, no Rio de Janeiro, certa vez. Assim, este ensaio é um delírio, um labirinto, um novelo, uma teia” (p. 148) “Às vezes, como Clícia, penso que carrego um fardo enorme. Meu corpo se curva e retorce como um girassol amargurado. De repente, quando vejo o sol lá no alto, abro-me em pétalas, ergo a face cansada e me entrego como oferta viva, pura, alma sedenta de luz” (p. 151) “Essas figuras preocupadas com a pouca comida são a representação da fome. Nos lugares com fome de ética, o povo padece fome” (p. 154) “Sentimo-nos sensíveis às mais diversas causas, choramos, empunhamos bandeiras, enquanto milhares de seres humanos morrem de forme ao nosso lado e não vertemos sequer uma lágrima por eles” (p. 156). “Não creio em felicidade. Tenho alegria, força, bom ânimo e escrevo” (p. 194) “Peço a vocês, meus queridos, que não me cremem. Que não destruam esse corpo que os amou, que gerou filhos e poemas, que se quebrou como vaso de barro em vários pontos. Cubram-me com um vestido de mangas longas e pintem meus lábios” (p. 200) “Somos sobreviventes quando continuamos vivos, depois de uma situação desastrosa” (p. 213).

Não quero encerrar sem uma palavra sobre o poema “Jardim Fechado”, uma beleza envolta em suave sensualidade onde tudo é dito sem usar as palavras para dizê-lo. Seriam desnecessárias (pp. 186/188).

Comentar o livro de Raquel Naveira é um desafio. Cada viés dele justificaria uma análise. Respingo aqui estas mal traçadas para que sobre ele não reine o silêncio neste cantão de praia.

Deixo no ar uma pergunta: a cronista é pessimista ou realista? Com a palavra o leitor.

E assim se fecha o leque.


Comentários sobre o texto podem ser enviados ao autor, no email e.atha@terra.com.br  



Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
Balneário Camboriú - SC





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