01/03/2021
Ano 24 - Número 1.212




ENÉAS ATHANÁZIO
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Enéas Athanázio


UM LIVRO FASCINANTE

Enéas Athanázio - Colunista, CooJornal

Depois de longos anos, tive um reencontro com uma figura exótica e genial: Toulouse-Lautrec. Isso aconteceu nas páginas de um livro fascinante, de autoria de Pierre La Mure, integrante da Academia Francesa, publicado no Brasil pela extinta e saudosa Editora Mérito, responsável por um catálogo de primeira linha, em tradução de Lígia Junqueira, tradutora respeitada pela perfeição de suas versões. Trata-se de “Moulin Rouge” (S. Paulo – 1956).

Henri Marie Raymond de Toulouse-Lautrec nasceu em Albi, na província francesa, em 24 de novembro de 1864. Era filho do Conde de Toulouse-Lautrec, integrante de antiga linhagem aristocrática que remontava à liderança das Cruzadas, o que constituía motivo de orgulho da família. O menino, portanto, era conde, embora jamais usasse o título. Ele vivia com a mãe e a criadagem em majestoso castelo dotado de luxo e conforto, uma vez que o pai, boêmio e dandy inveterado, permanecia em Paris a maior parte do tempo. A condessa proporcionava ao menino o mais dedicado tratamento e ele retribuía com imenso e sincero amor. Já o pai, nas poucas visitas, planejava para o filho um futuro de luxo e fama, como convinha a um membro da nobreza. Com a mãe, o menino Henri desfrutava de uma vida agradável, com passeios, viagens e toda sorte de diversões. Até que chegou a idade escolar e ele teve que ser enviado à escola, acontecendo a primeira separação da mãe, fato que o marcou de forma profunda. No colégio, porém, houve uma compensação: conheceu Maurice, que seria dedicado amigo durante toda a vida e com quem firmara o pacto de irmão de sangue.

O menino crescia forte e bonito, revelando aguda inteligência. De repente, sem razão plausível, começou a sentir fortes dores nas pernas e parou de crescer. Não conseguia caminhar, permanecia acamado, gemendo sem parar. Médicos do maior renome foram chamados mas não encontravam remédio para a estranha moléstia. Recomendavam temporadas em estações de águas medicinais e assim ele e a mãe peregrinaram por quantos balneários existiam na França. Sem resultado. O menino só crescia da cintura para cima enquanto as pernas, atrofiadas, permaneciam finas e fracas, só permitindo um andar desajeitado, amparado numa bengala. À medida que os anos passavam, constatava-se uma terrível realidade: Henri se tornou um anão desconforme e muito feio, tanto de corpo como de rosto. Diante da cruel realidade o pai se afastou do filho e só se encontrariam raras vezes ao longo da vida. O conde se sentia frustrado nos projetos que arquitetara para o filho.

Mas a natureza, piedosa, concedeu uma compensação. Desde menino, Henri revelava extraordinário talento para o desenho e estava sempre traçando retratos de pessoas e paisagens. Esses trabalhos infantis provocavam a maior admiração e grande parte deles se encontra hoje nos museus. Já moço, Henri sentiu necessidade de um ambiente mais livre onde pudesse se dedicar à arte. Contrariando a condessa, que temia pela sua saúde, parte para Paris e se instala no bairro boêmio de Montmartre. Ali aprimora o desenho e a pintura e passa a usar outras técnicas, inclusive a gravura. Prepara-se para tentar o ingresso no “Salon”, a mais importante e consagradora exposição da capital francesa, mas é recusado porque seus quadros foram considerados muito revolucionários, retratando a vida simples do povo. Enquanto isso, ele se entregava à boêmia, frequentando todo tipo de casas de mulheres, desde as mais luxuosas até as mais sórdidas, e chegando a morar por algum tempo em uma delas. Conhecia as mulheres pelos nomes, tornou-se confidente de algumas e pintou os retratos de muitas. Descobriu que a ingestão de conhaque aliviava sua dor nas pernas e passou a consumir doses cada vez maiores da bebida, tornando-se incurável dependente. Tomava grandes bebedeiras, caía e se machucava, adormecia sobre as mesas de bar. Seu modo de vida escandaliza a nobreza; ele encolhe os ombros e ri do falso pudor dos aristocratas. Torna-se famoso, é reconhecido aonde vai e seus quadros começavam a aparecer nas vitrines das galerias, despertando o interesse dos maiores marchands. Convive com a ralé do bairro e retrata com insistência o cancan, dança popularesca e sensual considerada imoral pelos conservadores. É visto sempre numa roda de aspirantes a artistas, entre os quais se destaca Vincent Van Gogh.

Numa dessas noitadas conhece um alsaciano de nome Zidler que planejava a criação de uma boate sem similar em todo o mundo e para a qual procurava o melhor. Bailarinas, atrizes, recepcionistas, garçons, barmen, gente da retaguarda. Para isso erigiu um prédio em formato de moinho, pintado de um vermelho vivo, iluminado de maneira feérica, destacando-se no centro do bairro. Era o Moulin Rouge que nascia, tornando-se desde logo uma das maiores atrações da capital e repercutindo em todo o mundo. Henri se alistou entre os frequentadores mais assíduos e lá pintava seus quadros inspirando-se em cenas vivas e coloridas.

A boate, no entanto, começou a declinar. Zidler decide promover intensa campanha publicitária e procura Henri. Quer que ele desenhe e imprima um cartaz monumental em litografia, ou seja, impressão na pedra, um dos gêneros mais difíceis da arte gravurista. Henri reluta, Zidler insiste, o artista cede. Sem experiência, Henri se aproxima de Père Cotelle, a maior autoridade no assunto, e passa a frequentar sua oficina. Em pouco tempo dominou a técnica, causando geral espanto. E assim nasceu o cartaz sobre o Moulin Rouge, colorido, vibrante, exibindo nítidas cenas de cancan. Em poucos dias ele aparecia em paredes, muros e fachadas de toda Paris e o nome de Toulouse-Lautrec caiu na boca do povo e nas colunas de jornais.

– É indecente! – diziam.
– É uma obra de arte! – replicavam outros.
– É imoral! – afirmavam muitos.
– É uma obra-prima! – bradavam outros tantos.

Os críticos se renderam à beleza da obra e ao talento do artista, consagrando-os nas suas análises e Henri entrou para sempre no mapa artístico francês. A campanha impulsionou a obra de Henri, cujos quadros alcançaram elevados preços e começaram a repercutir no exterior. E o Moulin Rouge se levantou e firmou.

Mas se a carreira vai bem, os amores vão de mal a pior. Denise, o grande amor da juventude, o repele com palavras ásperas, tachando-o de feto e aleijado; Marie Charlet chega a viver com ele no estúdio, exigindo cada vez mais um dinheiro que repassa ao gigolô, até que ele a expulsa; a linda e suave Myriame o abandona sem explicações quando ele se encontrava no exterior acompanhando uma de suas exposições. Solitário, só lhe resta o amor mercenário das mulheres da vida. Amargurado, afunda no conhaque e começa a definhar. Doente e fraco, refugia-se em Albi e se entrega aos cuidados da mãe. A condessa se desdobra em tratamentos e atenções, mas tudo é inútil. Ele não caminha mais e permanece acamado o tempo todo. Nos dias derradeiros recebe a visita do pai, arrependido do abandono em que deixara o filho infeliz.

Pouco antes de partir, Henri recebe um telegrama de Maurice, o irmão de sangue:

“O governo acaba de aceitar a coleção Camondo para o Louvre. Você venceu, Henri!”

Era uma compensação final à recusa do “Salon”.

No silêncio de Albi, diante de uma mãe desolada, desaparece um artista que o mundo todo venera. Foi em 9 de setembro de 1901.

Tinha 37 anos de idade.


Comentários sobre o texto podem ser enviados ao autor, no email e.atha@terra.com.br  



Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
Balneário Camboriú - SC





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