01/07/2020
Ano 23 - Número 1.179
 


ENÉAS ATHANÁZIO
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Enéas Athanázio


A RAINHA DO CRIME

Enéas Athanázio - Colunista, CooJornal

O escritor britânico John Curran, especialista na vida/obra de Agatha Christie (1885/1970) teve acesso e conseguiu examinar os célebres Cadernos da criadora do investigador Hercule Poirot. Contando com a anuência e o incentivo de Mathew Prichard, guardião do acervo e neto da escritora, ele pode manusear um por um dos 73 Cadernos em que a escritora fazia suas anotações. O pesquisador nutria esperança de que neles encontraria a chave do método criador de uma escritora que publicou mais de 80 livros policiais, peças de teatro e textos variados, tornando-se uma das personalidades mais famosas do panorama literário mundial.

Para sua surpresa, os Cadernos continham verdadeira balbúrdia de anotações sobre diversos assuntos, com páginas em branco, muitas utilizadas apenas em parte e outras riscadas de cima a baixo. Anotações sobre a obra eram sempre sumárias e em alguns locais não passavam de três ou quatro palavras. A conclusão inevitável a que chegou foi a de que o método da Rainha do Crime era justamente o de não ter método. Ela própria admitiu, em entrevista, que não tinha qualquer método e só escrevia sobre aquilo que conhecia. Como o pesquisador conhece a obra de Agatha em minúcias, encontrou algumas pistas que o levaram a concluir que se tratavam de esboços para histórias concluídas ou abandonadas. Fez um laborioso trabalho de arqueologia literária.

O ponto mais alto e positivo, no entanto, estava na descoberta de dois contos inéditos de Agatha Christie e que foram por ele publicados pela primeira vez. Trata-se de “A captura de Cérbero” e “O incidente da bola de cachorro.” Surgiram então mil especulações: por que eles não foram publicados, mesmo tendo sido produzidos há tanto tempo? As hipóteses fervilham e o ensaísta se debruça sobre cada uma delas. No caso do primeiro conto, é evidente a semelhança do personagem central com Adolf Hitler, e essa talvez tenha sido a razão pela qual a autora não o publicou. Ela era terminantemente apolítica. No caso do segundo conto, cenas semelhantes teriam sido usadas em outra história, motivo pelo qual a autora não o deu a público. Esse detalhe, no entanto, em nada prejudicou o conto que não perdeu a qualidade. Ambos os contos são excelentes e muito bem escritos. Aliás, a Rainha do Crime escrevia muito bem, de forma precisa, leve e agradável. “A prosa de Agatha – escreve Curran, – única em todos os sentidos, flui com facilidade, os personagens são factíveis e distintos e grande parte dos romances é narrada em forma de diálogos.” Como Hemingway, ela foi mestra do diálogo.

Os estudos de Curran sobre os misteriosos Cadernos e os dois contos foram publicados no Brasil em dois volumes pela Editora Leya – Texto Editores (S. Paulo – 2019), em tradução de Thereza Christina Roque da Motta. Constituem uma leitura das mais curiosas pelo que contêm de detalhes, informações, reproduções, bastidores das histórias e análises. É interessante observar a onipresença de Poirot que, embora criado por uma autora britânica, é de nacionalidade belga e usa frequentes expressões francesas nas suas falas. Também valem suas “filosofias”, como “em tempos de desespero, é preciso aplicar meios desesperados.” Como o inspetor Maigret, de Simenon, às vezes parece que Poirot mais adivinha que desvenda. A personalidade de Poirot é cintilante, magnética, e ele dá a impressão de que está se divertindo durante as investigações e não exercendo seu poderoso raciocínio.

Encerrando estas notas, transcrevo uma indagação que Curran deixou no ar: “Por quê? Porque nenhum outro autor de romances policiais escreveu tão bem, tanto ou por tanto tempo, ninguém conseguiu igualar sua combinação de legibilidade, trama, justiça e produtividade?”

Eis a questão.

Comentários sobre o texto podem ser enviados ao autor, no email e.atha@terra.com.br  



Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
Balneário Camboriú - SC




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