01/06/2020
Ano 23 - Número 1.175
 


ENÉAS ATHANÁZIO
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Enéas Athanázio


MAIS QUE UMA GUERRA

Enéas Athanázio - Colunista, CooJornal

Ao amigo Carlos Adauto Vieira



Torres Pereira, radicado em Chapecó, viveu uma experiência rara. Nascido em Lisboa, onde residia, foi convocado, ainda muito jovem, para integrar a força expedicionária enviada à África para combater os rebeldes na guerra de independência de Moçambique. Colônia portuguesa (eufemisticamente denominada de província ultramarina), aquele país foi tomado por uma onda nacionalista que desejava a todo custo se desligar de Portugal. O governo português, tendo à frente o ditador Salazar, se recusava a abrir mão da colônia, alegando que a Constituição do país declarava unos os territórios da metrópole e das colônias, ainda que descontínuos. O povo percebia que se tratava de uma guerra perdida e que sua continuação implicaria em constantes perdas de vidas de jovens soldados enviados para uma missão destinada ao fracasso. Mas havia censura e o ditador insistia em manter o conflito.

Agora, depois de tantos anos, Torres Pereira decidiu rebuscar nos escaninhos da memória e publicar o livro “Mais que uma guerra” (Edição do Autor – Chapecó – 2019), revivendo dias sofridos nas selvas africanas às voltas com toda espécie de perigos. Trata-se de um relato muito vivo e coloquial, repassado de sentimento, que prende o leitor até a última página. Por outro lado, revela um profundo conhecedor da história de Portugal e suas possessões ultramarinas que foram se emancipando aos poucos e de forma inevitável. Como ressalta ele, só em 1960, pelo menos quinze “novas nações” proclamaram sua independência: Somália, Camarões, Togo, Sudão, Congo, Nigéria, Senegal, Madagascar, Daomé, Chade, Gabão e Mauritânia. Com o slogan de “A África será livre e unida” solicitava-se que a ONU incluísse em sua Assembléia Geral a questão do ultramar português e a independência de Angola. A intransigência em manter os domínios esbarrava no sentimento independentista que varria o mundo.

Na pele do personagem Arriaga, o autor relata o que foi a experiência por ele vivida, desde a partida no navio “Vera Cruz”, o desembarque em Moçambique e a primeira jornada em direção ao acampamento quando já encontram a estrada bloqueada com troncos e são surpreendidos com uma saraivada de tiros que vêm da mataria fechada. São os guerrilheiros anunciando sua presença. Mas chegam ilesos ao acampamento, depois de uma vigorosa resposta a tiros de metralhadora, e vivem em constante suspense e sujeitos a ferozes ataques. Ali permanecem, realizando as mais perigosas missões, convivendo com os ataques de surpresa, as minas terrestres, os incêndios provocados e as emboscadas. É ferido numa dessas ações e recolhido ao hospital. Logo se recupera e volta às atividades.

Mas a guerra está perdida. Os revoltosos dominam o norte do país, enquanto a companhia de Arriaga é rendida por outra e ele e seus amigos Cosme e Arouca são dispensados. A história segue seu curso e Moçambique é entregue à FRELIMO cujo chefe, Samora Machel, implanta a República Popular de Moçambique. O prometido referendum entre a população local não é realizado. Um violento sentimento anti-português explode no país e tudo que tem relação com Portugal é repudiado. Até estátuas homenageando figuras históricas são apeadas. Legiões de pessoas, em longas caravanas, deixam o país. Lourenço Marques, a capital, passa a se chamar Maputo.

O saldo da guerra é macabro. Foram milhares de jovens que perderam a vida, sofreram ferimentos de todos os tipos e sofreram os horrores de uma luta sem trégua em plena selva. Sem falar nos gastos com material bélico que poderiam ter melhor destino em favor do povo. Tudo graças ao criador do chamado Estado Novo cujas diretrizes foram estabelecidas na Constituição salazarista por ele inspirada.

Por fim, como explicar tanto ódio aos portugueses? Vamos dar a palavra ao autor: “O que muito nos admira, é de que maneira, por séculos, Portugal conseguiu passar por bom menino na Guiné, Angola e Moçambique, sabendo-se que a realidade era outra: a começar pelo abandono e exploração das populações locais, que pouco mudou desde a época dos descobrimentos” (p. 29). E mais: “Só que não soubemos tirar proveito duma situação que tinha tudo para dar certo. A de dialogar mais e cuidar melhor das populações sob nossa jurisdição. A de dar um basta ao trabalho escravo nas grandes fazendas e implodir, de uma vez por todas, com a figura sinistra do latifundiário, escravocrata, melhor dizendo. Ao invés disso, que fizemos? Preferimos não prestar a devida atenção a esses e outros problemas que se iam agigantando à medida que os anos passavam A acreditar que, o que, vínhamos fazendo há séculos de errado, era o certo” (pp. 40/41).

A história não perdoou.

É interessante indagar se o exemplo de Moçambique serviu de lição a outros governantes. Parece-me que não.

O livro de Torres Pereira é recheado de memórias do autor, travestido em Arriaga, desde a infância.

É uma leitura que vale a pena.

Comentários sobre o texto podem ser enviados ao autor, no email e.atha@terra.com.br  



Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
Balneário Camboriú - SC




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