01/06/2019
Ano 22 - Número 1.127
 


ENÉAS ATHANÁZIO
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Enéas Athanázio


QUEM MATOU O BUGREIRO?

Enéas Athanázio - Colunista, CooJornal


A ação dos chamados bugreiros em nosso Estado tem provocado inúmeros trabalhos, a grande maioria na área histórica. O assunto é um prato cheio que poderia inspirar a ficção e a poesia, mas muito pouco tem sido aproveitado. Fenômenos locais ou regionais de repercussão, a exemplo do cangaço, dos jagunços, dos santos populares e outros têm dado margem a romances, novelas, contos, crônicas, poemas, filmes e programas televisivos, enquanto o genocídio dos bugres é pouco lembrado. Não me arrisco a pensar que isso se deva à falta de imaginação ou a um secreto pudor ou vergonha de expor o problema aos olhos do grande público. Nascido e criado dentro do território do Contestado, percebi que a população da região nutria tais sentimentos em relação ao movimento, considerando-o coisa de fanáticos e ignorantes. Essa atitude, como se percebe, ocasionou a perda de incontáveis fontes de informação sobre o Contestado. Haveria em relação aos bugreiros algo semelhante?

Paulo Sá Brito, escritor radicado em Florianópolis e veterano no gênero romanesco, enveredou por outro caminho e romanceou a saga dos bugreiros em “Desde menino me choro”, publicado por Quorum Comunicação (Florianópolis – 2019). Conhecedor do tema, leitor atento das obras de outros autores que escreveram a respeito, deu asas à imaginação e criou um romance vivo e absorvente sem, contudo, violar as balizas históricas. Criou um autêntico romance indigenista sem pretensões panfletárias. O título, excelente, é inspirado em verso de Fernando Pessoa.

Tudo tem início quando uma tribo de índios xokleng é atacada pelo bando de Martinho Bugreiro numa escura madrugada. O pequeno Cuitá dormia agarrado à mãe, ao lado dela, a cabeça encaixada nos generosos seios maternos. Gritaria e tiros acordam as pessoas que dormem e o pânico toma conta da aldeia. Sem resistir porque suas armas foram destruídas, os guerreiros procuram fugir levando as mulheres e crianças, enquanto outros procuram se esconder. Mas o ataque é implacável e os índios vão tombando, atingidos pelas balas ou por certeiros golpes de facões, inclusive a mãe do menino. Cuitá se refugia numa das cabanas mas é encontrado e agarrado pelo próprio Martinho em pessoa. Findo o ataque, chorando em desespero, gritando e esperneando, é levado para a cidade e vendido a um casal de imigrantes alemães. É bem tratado pelo casal, “civilizado” e educado, embora sofrendo pela ausência da mãe e das pessoas de sua tribo. Não havendo alternativa, esforça-se para vencer no meio dos brancos. Estuda, aprende e, superando os preconceitos e as dificuldades, se torna professor em Curitiba. Cuitá se transformou em Gunther.

Assim que entendeu o que acontecera, o menino se fixou na ideia da vingança. Houvesse o que houvesse, ele haveria de matar Martinho Bugreiro. Os anos passam e ele se mantém firme nesse propósito. Não haveriam de faltar oportunidades.

Como pano de fundo, o romance descreve os massacres praticados pelo célebre bugreiro, seu esquadrão da morte e outros que se dedicavam à mesma atividade. Sua incrível habilidade em descobrir pistas na mata virgem para localizar as aldeias, os despistes para não ser pressentido, os ataques repentinos enquanto os índios dormiam, o pânico provocado e a mortandade cruel de homens, mulheres e crianças a tiro e a facão, cortando na carne mole onde o fio penetrava como em bananeira, conforme afirmou um dos assassinos. Com extrema frieza, cortava as orelhas das vítimas cujos pares constituíam os documentos para a prestação de contas aos mandantes. Segundo diziam, era escrupuloso nesses acertos e sempre sério. Nunca teria sido visto rindo. Já os “filhotes de bugres”, a exemplo de Cuitá, eram levados para vender como serviçais a famílias da sociedade e quanto mais longe, melhor.

Muitas outras informações curiosas e algumas até surpreendentes vão surgindo no correr do romance. Entre estas últimas, a revelação de que Martinho chegou a agir em Lages e Curitibanos, fatos em geral desconhecidos. Os hábitos dos indígenas, a singularidade da língua xokleng, o consumo de cupins, carrapatos e até piolhos como alimentos, enquanto recusavam a ingestão de peixes, o desconhecimento da existência de outros seres humanos fora de sua etnia e o nomadismo ancestral vão formando um precioso painel a respeito desses gentios. Outros bugreiros, anteriores e contemporâneos de Martinho também são relacionados com seus nomes e regiões de atuação.
A entrada em cena do indianista Eduardo Lima e Silva Hoerhann, depois alcunhado de Katanghara, também enriquece a narrativa. Às margens do rio Plate, curso d’água que entrou na história, ele estabeleceu o primeiro contato dos brancos com os índios da tribo xokleng. Precisou de tempo para conquistar a confiança deles e chegou a ser quase escravizado. Ganhou a admiração dos gentios e estes lhe deram o nome de uma madeira elástica a resistente como homenagem e prova de admiração. Eduardo teria ameaçado Martinho de morte caso prosseguisse em suas matanças. Mais tarde, acabrunhado e triste, Eduardo se afastou de tudo, manifestando arrependimento do que havia feito em face do que acontecia com os índios. Faleceu no ostracismo e está sepultado em Ibirama.

O romance de Paulo Sá Brito é um manual de indigenismo sem propósito didatista. Alia o prazer da boa ficção ao ensinamento e à informação. Indica novo rumo ao romance de fundo histórico em nossa literatura.

Quanto a Cuitá, manteve ao longo da vida o propósito de matar Martinho para vingar a sua tribo. Até que ele de fato faleceu aos cinquenta e poucos anos, envelhecido e decadente. Mas quem o matou não foi Cuitá, apesar do seu ardente desejo, mas o paratifo que grassava na região.

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Comentários sobre o texto podem ser enviados ao autor, no email e.atha@terra.com.br  



Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
Balneário Camboriú - SC




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