16/04/2019
Ano 22 - Número 1.121


 


ENÉAS ATHANÁZIO
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Enéas Athanázio


REVELAR, NÃO ESCONDER

Enéas Athanázio - Colunista, CooJornal


Na época em que residi em Curitiba, na velha Pensão de Dona Rosa, a quinhentos metros da Boca Maldita, meu colega de quarto possuía excelente biblioteca que, aliás, era do pai dele, porque ele mesmo não lia nada. Abusando dela, nos dias de chuva e frio, comuns na cidade, eu tomava verdadeiras bebedeiras de leituras. Foi nessas ocasiões que li toda a obra de Humberto de Campos, o notável Conselheiro XX, cujas Obras Completas, em 22 volumes, publicadas pela W. M. Jackson Inc, em 1941, integravam o acervo. Não recordo como e nem porquê essa coleção veio às minhas mãos e comigo permanece até hoje, enfrentando muitas andanças e mudanças, de casas e de cidades. Em face disso, nunca estive afastado do notável escritor maranhense, a cujos livros tenho retornado com frequência, sempre com o mesmo prazer e admiração pela sua magnífica escrita. Agora mesmo, em leituras intensivas, percorri os dois volumes de suas extraordinárias “Memórias.” Terá esse tão longo contato me influenciado? Confesso que não sei. Lembro que o saudoso Prof. Nereu Corrêa, nosso maior crítico, foi leitor assíduo de Humberto de Campos e se aprestava para escrever um ensaio a respeito de sua obra. Mas, infelizmente, não teve tempo.

Impressionam nesse escritor a elegância do estilo e a vastíssima erudição numa pessoa que viveu tão pouco. Cada uma de suas páginas é uma exibição de cultura e sabedoria. É também admirável a franqueza com que recorda o passado, nada escondendo, nem mesmo os erros que, como todo mundo, um dia cometeu. Como Jean-Jacques Rousseau, de quem foi aplicado leitor, sustentava que as memórias são para revelar, nunca para esconder ou escamotear.

Muito pobre, órfão de pai em tenra infância, padeceu toda sorte de privações, inclusive a fome aguda. Entregue aos cuidados de uma mãe lutadora mas enérgica, que lhe aplicava violentas surras, viveu momentos angustiantes, sem teto e sem pão. Numa viagem de navio, alegrava-se por não enjoar e “almoçar e jantar três vezes ao dia.” Passou por diversas escolas, sem grande proveito, e permaneceu por longo tempo na mais completa vadiagem, tanto em Meritiba, a terra natal, como em Parnaíba, no Piauí, onde a família viveu por muitos anos. Desde cedo, porém, nele se manifestou o gosto pela literatura e o hábito de ler se consolidou para sempre. Lia e estudava tudo que lhe caía nas mãos e assim amealhou vasto e variado conhecimento. Formado em Direito, andou por São Luís e por Belém, até se fixar no Rio de Janeiro, então capital do país, onde se consagrou como escritor e o cronista mais lido e influente de seu tempo. Foi deputado federal pelo Maranhão e ingressou ainda moço na Academia Brasileira de Letras.

Homem sofrido, os padecimentos fizeram dele uma pessoa triste e pessimista. O sofrimento deixou marcas indeléveis e elas transparecem com clareza em sua obra. Além disso, era um menino feio, ou assim se considerava, como escreveu nesta passagem: “Porque, se eu não nasci doente nem débil, sempre fui proclamado, embora sem irritação, consciente da minha parte, o menino mais feio da família. Nasci feio, e tenho sido, na vida, nesse ponto, de uma coerência acima de todo elogio.” Percebe-se que aceitava a proclamada feiúra, sem protesto ou revolta. Fazendo um balanço da vida, concluía que também não fora bafejado pela sorte. Eis o que afirmou: “O pouco que me dão na vida, ou é dado de má vontade, ou é podre.” Recordando o passageiro momento de felicidade que lhe provocou um brinquedo, escreveu: “E que tem sido para mim, pelo resto da vida, a felicidade, senão um brinquedo roubado, que eu escondo, que dissimulo assustadamente no coração, e que, no entanto, descobrem, e me tomam, quando custaria tão pouco me deixarem com ele?” Numa das passagens mais melancólicas de seus escritos, recorda ele o meio miserável em que cresceu. “O que eu via em redor de mim, fora do quadro escuro da nossa casa em que se lutava heroicamente pelo pão, era o tumulto das misérias humanas, a glorificação dos atos criminosos, e uma pequena humanidade arrastada, pela pobreza ou pela mediocridade do ambiente, para a sarjeta da vida e do mundo.”

Em “Fim de Século”, uma das páginas mais sentidas que escreveu, recorda a passagem do Século XIX para o Século XX. Alertado pelas leituras, o garoto de treze anos, imaginava o que traria o novo século, as conquistas, os espantos, os prodígios, as surpresas e as esperanças que enchiam o coração da humanidade. Ele imaginava o que ia lá fora, ouvia o foguetório, os gritos alegres, a música que enchia as ruas com seus sons repletos de alegria, as fábricas e os navios apitando com estridência. Mas ele, no interior obscuro e lúgubre da mercearia onde era caixeiro, ajudava o chefe no balanço do estoque, contando garrafas de bebidas e cantando em voz alta:

- Trinta e seis de Macieira!

- Vinte e duas de Colares!

- Trinta e seis de conhaque!

“A Civilização vira uma página lida – depõe ele – sem saber que emoções lhe reserva a outra, que vai ler... De pé na escada, tudo isso me passa pelo pensamento.” Mas sem um protesto ou um movimento de má vontade, continua a trabalhar. A humanidade entra numa nova era; o garoto, porém, tem que garantir o pão de amanhã.

Na crônica “Os Vareiros”, talvez sua página mais célebre, descreve a lida dos homens que impelem rio-acima as chatas pelo rio Parnaíba. Fixam a longa vara no fundo do rio, ajeitam a outra ponta no peito calejado e caminham pela borda, empurrando a pesada embarcação contra a corrente. Os atos são repetidos e continuados, dezenas, centenas, milhares de vezes e, uma vez chegados ao destino, tudo recomeça, agora em sentido contrário. E ele, então, velho, doente e quase cego, se compara aos vareiros: agarrado à máquina de escrever, como eles ao varão, escreve e escreve porque na escrita está seu ganha-pão e sua razão de viver. Escrever, diz ele, é sua glória e seu infortúnio, como também afirmava Rousseau.

Não obstante, foi muito criticado por escritores impiedosos e talvez ressentidos. Diziam que sua literatura era nociva e conformista, o que prejudicaria a juventude. Num desabafo contra um desses ataques, desferido por um jovem jornalista, lembrou que João Diogo, chegando ao céu, passou a descrever catastrófica enchente do rio São Francisco, causadora de mortes e tragédias. Muitos se espantaram, exceto um velhinho de longas barbas brancas, que não revelou qualquer surpresa. Findo o relato, João Diogo indagou: quem é o cidadão indiferente? E o informante: ele é Noé!

Diante da crítica do jovem, concluiu o escritor, ele antepunha sua experiência de vida às restrições do jornalista:

- Nesse terreno, eu sou Noé! – proclamou.

Numa das passagens mais brilhantes, irônicas e divertidas de sua obra, lança um “Manifesto à Nação.” Segundo ele, estava imitando todos os políticos que afirmavam que o país afundava quando, na verdade, eles próprios é que submergiam. Nessa página saborosa ele como que traça um roteiro para o que lhe resta de vida:

- Não voltar mais à política militante;
- Não receber originais de livros para ler;
- Não escrever sobre livro cujo autor lhe peça;
- Votará na Academia contra todo candidato que peça manifestação anterior sobre seu voto;
- Não escrever mais prefácios;
- Não aceitar convite para banquetes;
- Não servirá de “pistolão” junto a autoridades;
- Nos contratos de edição exigirá a numeração dos exemplares, não porque duvide dos editores, mas porque eles estão ricos e os escritores continuam pobres;
- Não emprestar livros de sua biblioteca porque eles são como o corvo que Noé soltou da arca; voam e não voltam;
- “Sorrirás diante de todas as cousas graves da vida. O sorriso transforma a ignorância em sabedoria.”

Ignoro se ele cumpriu até o fim suas próprias regras.

Mas vale a pena ler e reler a obra desse escritor tão brilhante quanto esquecido, cujas palavras enternecem e ensinam.

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Comentários sobre o texto podem ser enviados ao autor, no email e.atha@terra.com.br  



Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
Balneário Camboriú - SC




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