04/06/2018
Ano 21 - Número 1.079

ENÉAS ATHANÁZIO
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Enéas Athanázio

REPÓRTER DO COTIDIANO

Enéas Athanázio - Colunista, CooJornal

“Amo o assunto indígena!”
(Olga Savary)

Disse alguém que o cronista é uma espécie de repórter do cotidiano. Isso porque ele tem que estar sempre atento, com as antenas ligadas, para captar o que acontece ao seu redor, muitas vezes fatos mínimos, para transformá-los em belas páginas literárias. Grandes cronistas têm se valido de acontecimentos que outras pessoas nem sequer percebem para produzirem maravilhosas crônicas. Lembro-me, por exemplo, de que Rubem Braga fez do voo de pequena borboleta amarela uma de suas melhores páginas, sempre selecionada entre as mais perfeitas produções do gênero entre nós. Fernando Sabino, notável cronista, denominava sua coluna de aventura do cotidiano, mostrando que fatos inexpressivos na aparência poderiam ser travestidos em excelentes crônicas.

Gênero leve e breve, integrante do chamado jornalismo cultural, o local mais adequado para a crônica é a página do jornal ou da revista. Reunida em livro ela perde muito de seu viço e de seu frescor, exceto quando se trata de uma coletânea de excepcional qualidade literária, como tem acontecido com obras que contenham trabalhos de cronistas de grande talento para o gênero. Aliás, a literatura brasileira tem contado com excelentes cronistas, desde os mais antigos, como Machado de Assis e Humberto de Campos, até os mais modernos, como o referido Rubem Braga, Fernando Sabino, Otto Lara Resende, Henrique Pongetti, Carlos Drummond de Andrade e mais alguns, que se tornaram conhecidos do grande público e conquistaram lugar de destaque na história literária.

Muitos outros cronistas também se destacaram no gênero, ainda que não conquistassem tal renome porque escreveram fora do chamado eixo Rio-São Paulo. Foi o caso, por exemplo, do catarinense Jair Francisco Hamms, primoroso cronista, autor de excelentes páginas, permeadas de criatividade e humor. Seu livro “O vendedor de maravilhas” é uma leitura que encanta sempre. Outro caso bem típico foi o de Luís da Câmara Cascudo, que se dizia um provinciano incurável e que sempre se recusou a deixar Natal, sua cidade. Embora considerado o maior folclorista brasileiro e com reputação internacional, sua obra de cronista não encontrou a mesma ressonância porque publicada em jornal local, mesmo que em nada perdesse para os textos de seus colegas de ofício dos grandes centros.

Por tudo isso, muito bem fez o escritor Franklin Jorge ao selecionar a reunir em belo livro as “Actas Diurnas”, crônicas de Cascudo publicadas originalmente no jornal “A República.” É um conjunto de textos escolhidos com critério, mostrando o talento e a versatilidade do mestre potiguar para o apreciado gênero. Ali estão bem visíveis a sua segurança no manejo das palavras, o senso arguto de observação, o humor suave e bem dosado, o domínio do gênero, enfim. Nada lhe escapa, desde os detalhes da cidade, os perfis de figuras anônimas ou de destaque, acontecimentos maiores ou menores, a paisagem, o mar, as feiras e tudo mais. Ressalta, no correr do texto, a admirável cultura do autor, revelando minúcias, corrigindo equívocos, acrescentando informações. Seus olhos se voltaram também para figuras interessantes que povoavam a cidade como, de resto, todas as outras, sem que sejam notadas pelo comum dos mortais. Assim, a morte de uma mulher conhecida como hamburguesa, a prisão de um certo Lourival Açucena, as atividades do Zé da Banda, as excentricidades de Urbano Hermilo, Chico Gordo e outros são imortalizados em deliciosas crônicas. Sem falar em fatos do dia-a-dia da cidade, daqueles que nem são mais notados porque se repetem: os sinos da matriz e os significados de seus toques, o galo da torre da igreja, a chaminé da fábrica e sua fumaça, tudo vira crônica nas mãos mágicas do escritor que vivia no casarão da Avenida Junqueira Aires, hoje Avenida Câmara Cascudo, e que só recebia visitas à tarde porque virava a noite com o nariz enterrado nos seus livros. O livro devolve ao leitor o Câmara Cascudo com toda sua verve e sua cultura. A leitura foi um agradável reencontro com ele e por isso vão meus aplausos a Franklin Jorge pela justiceira iniciativa.

Tive o prazer de conhecer Câmara Cascudo. Passei toda uma tarde na casa dele, em 1983, três anos antes de seu falecimento, quando muito conversamos. Recebi dele, na ocasião, o livro “Anúbis e outros ensaios”, que guardo até hoje com muito carinho. Trocamos muitas cartas, ele escreveu sobre meus contos e costumava me qualificar como o mais meridional de seus correspondentes. É uma figura que faz falta e que deixou saudades.


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Comentários sobre o texto podem ser enviados ao autor, no email e.atha@terra.com.br

 



Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
Balneário Camboriú - SC




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