01/07/2017
Ano 20 - Número 1.035

ENÉAS ATHANÁZIO
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Enéas Athanázio


NO TEMPO DOS REDUTOS

Enéas Athanázio - Colunista, CooJornal

A chamada Guerra do Contestado (1912/1916) tem despertado o interesse de inúmeros pesquisadores e conta hoje com volumosa bibliografia. Creio, no entanto, que ainda não surgiu uma obra unificadora, fornecendo uma visão geral e completa dos acontecimentos. Talvez isso aconteça em virtude da grande extensão do território onde se desenrolaram as hostilidades (cerca de 28.000 km2), da longa duração do conflito e dos inúmeros locais em que ocorreram combates. Diante disso, as informações são esparsas, colhidas em numerosos livros e outras publicações, dificultando uma visão de conjunto. Nem sempre os relatos coincidem, encontrando-se contradições, omissões e discrepâncias difíceis de explicar. Alguns dos livros publicados, no entanto, fornecem informações minuciosas sobre determinados episódios omitidos em outras obras, permitindo preencher muitas lacunas.

Entre estes, destaca-se “Da cidade santa à corte celeste: memórias de sertanejos e a Guerra do Contestado”, de autoria de Delmir José Valentini, publicado pela Universidade do Contestado – UnC (Caçador – 2003). Professor dessa Instituição e pesquisador na área da História, o autor realizou um trabalho modelar, baseado em vasta bibliografia e valorizando as buscas in loco, entrevistando numerosas pessoas, algumas delas participantes dos acontecimentos ou seus descendentes, além de moradores antigos da região. Graças à história oral, obteve informações inéditas ou pouco conhecidas, enriquecendo sobremodo seu trabalho.

O livro é dividido em cinco capítulos: Cenário e Protagonistas, A Igreja e a Crença, Redutos da Fé, Personagens e Adeodato e o Crepúsculo. No capítulo de abertura o autor descreve o palco dos acontecimentos, sua geografia, fauna e flora, a extração da erva-mate e tudo mais. Examina a situação dos moradores da região, em grande parte caboclos sertanejos submetidos ao despotismo dos latifundiários, entregues à pobreza e ao abandono, sobrevivendo com dificuldade num clima hostil. Sustenta suas observações em manifestações escritas e orais, inclusive de militares e participantes diretos dos eventos. Vale-se, ainda, de seu perfeito conhecimento pessoal da região.

No capítulo seguinte aborda a decisiva influência exercida pelos dois monges que peregrinaram pela região, João Maria Agostini e João Maria de Jesus, em especial a deste último, cujas pregações calaram fundo no coração dos sertanejos. Mostra como, aos poucos, o catolicismo rústico foi superado pela crença na Santa Religião dos redutos, o relacionamento entre os padres franciscanos e os monges e a atmosfera de misticismo que envolveu o Planalto. Descreve, em seguida, a entrada em cena do monge José Maria, curandeiro que se apresentava como irmão de João Maria Agostini e que pereceu no chamado Combate do Irani, no dia 22 de outubro de 1912, sendo sepultado em cova rasa para facilitar sua prometida ressurreição à frente do exército encantado de São Sebastião. Fornece curiosos dados biográficos do monge e reafirma que seu nome era Miguel Lucena de Boaventura, hoje posto em dúvida por outros pesquisadores.

Talvez o mais interessante do livro, o terceiro capítulo aborda os principais redutos ou cidades santas onde se reuniam os revoltosos, a vida dentro deles, suas práticas, hierarquia, orações e tudo mais, a forma de arrecadação de alimentos, vestuário, armas e munições. Taquaruçu, nas proximidades de Fraiburgo, Caraguatá, em Perdizes Grandes, Bom Sossego, Caçador, Santa Maria (Timbó Grande), São Miguel e São Pedro são descritos com suas localizações, organização interna, chefes, quadros santos, sem faltarem as virgens santas e os meninos que “conferenciavam” com o monge. É um conjunto de informações difíceis de serem encontradas.

O capítulo IV se ocupa dos personagens. O primeiro a aparecer é “Dom” Manoel Alves de Assumpção Rocha, sagrado imperador constitucional da Monarquia Sul Brasileira, em agosto de 1914, quando circulou uma carta à nação, espécie de Constituição, a ele atribuída. Curandeiro simplório, que andava descalço e com as calças arregaçadas pelas canelas, analfabeto, conhecido como Mané Rocha, o episódio aparenta ser uma troça e a autoria da Constituição, segundo li em algum lugar, seria de um Promotor Público. Seja como for, a coroação não vingou, e a participação do “imperador constitucional” foi efêmera e apagada. Chica Pelega e Maria Rosa também entram em cena, reforçando a presença feminina. Dentre os comandantes, avultam as figuras de Venuto Baiano (Benevenuto Alves de Lima), sobre quem pouco se sabe, mas que foi “comandante de briga” e chefiou o ataque a São João dos Pobres, hoje Matos Costa. Natural da Bahia, de origem italiana, teria sido marinheiro e desertou durante a Revolta da Armada, em abril de 1894, em um porto catarinense, segundo afirmou Vinhas de Queiroz. Olegário Ramos, Agostinho Saraiva, Henrique Wolland, Aleixo Gonçalves de Lima, Antônio Tavares Júnior, Bonifácio José dos Santos (Bonifácio Papudo), Conrado Grober e Francisco Alonso de Souza (Chiquinho Alonso) são outras figuras de relevo cujas personalidades e atuação são examinadas.

O último capítulo descreve o período final da revolta e a queda dos redutos diante das forças oficiais. Foi o reinado de Adeodato Manoel Ramos, cujo verdadeiro nome era Joaquim José de Ramos, mais conhecido como Leodato. Governando o reduto com mão de ferro, suas atrocidades teriam sido inumeráveis. Resistiu até o fim, embrenhando-se nas matas, até que foi aprisionado, faminto, molambento e desesperado. Numa desastrada tentativa de fuga da penitenciária de Florianópolis, depois de ter sido condenado, foi morto pelo coronel Trujilo de Melo. Adeodato teria implantado verdadeiro regime do terror durante seu comando e inspirava no povo humilde um misto de medo e admiração. Foi o último jagunço.

A leitura do livro sugere algumas observações. A primeira se prende ao monge João Maria Agostini, o primeiro. Pesquisas posteriores conseguiram rastrear seus passos. Saindo do Brasil, percorreu a América Central e foi ter nos Estados Unidos, onde teria sido morto por índios selvagens no estado do Novo México. No local, segundo consta, foi erigido um marco registrando seu falecimento. É impressionante como ele andou! A segunda observação se refere a Chiquinho Alonso. Segundo alguns autores, ele chefiou o ataque a Calmon, no dia 5 de setembro de 1915, quando teria entre 16 e 17 anos de idade. É uma informação que não fecha com o que se lê neste livro. Antes desse ataque ele já fora comandante de um reduto, sendo pouco provável que fosse tão jovem.

Comentários sobre o texto podem ser enviados ao autor, no email e.atha@terra.com.br

 

(1º de julho, 2017)
CooJornal nº 1.035



Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
Balneário Camboriú - SC




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