15/04/2017
Ano 20 - Número 1.025

ENÉAS ATHANÁZIO
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Enéas Athanázio


“VIDA OCIOSA”: ALGUMAS NOTAS

Enéas Athanázio - Colunista, CooJornal

Depois de muito tempo, reli o romance “Vida Ociosa”, de autoria do escritor mineiro Godofredo Rangel (1884/1951). Foi o livro de estreia do autor, lançado em 1920, com o selo da Revista do Brasil, de Monteiro Lobato & Cia. Editores. Trazia como subtítulo “romance da vida mineira”, retirado nas edições posteriores.

Edgard Cavalheiro afirmou, mais tarde, que o livro teve pouca aceitação. Monteiro Lobato, porém, discordou de seu futuro biógrafo e mais de uma vez enfatizou o valor literário da obra rangelina. “Indubitavelmente – escreveu ele – foi este livro a obra-prima do ano, e tempo virá em que o juízo unânime da crítica, em coincidência admirável com o juízo unânime do público, o coloquem entre a meia dúzia de obras supremas, formadoras da cúspide da literatura nacional.” E, em outra passagem: “O que assombra neste livro é a perfeição absoluta de fatura, coincidindo com a perfeição absoluta de ideação, circunstância feliz que faz da “Vida Ociosa”, em meu humilde parecer, o único livro nosso que, embora de gênero diverso, possa ser colocado numa estante entre “Brás Cubas” e “D. Casmurro.” Poderão dizer que se tratava de opinião de amigo, mas Lobato exalava sinceridade e seu parecer não foi isolado.

Com efeito, em artigos, cartas e manifestações diretas, aplaudiram o romance: Adalgiso Pereira, Ricardo Gonçalves, Augusto de Lima, Moacir Deabreu, J. A. Nogueira, João Pinto da Silva, Tristão de Athayde, Arthur Neiva, Graça Aranha, Ronald de Carvalho, Silva Ramos, Raul Vergueiro, Antônio Cândido, Hilário Tácito, D. Antônio de Almeida Morais Jr., Mário Matos, João Dornas Filho, Guilherme de Almeida, Breno Ferraz, Antônio Salles, Alphonsus de Guimarães Filho, Rodrigo M. F. de Andrade, João Alphonsus, J. Guimarães Menegale, Benjamin de Garay e B. Sanches Sãez, estes dois últimos de Buenos Aires.

Além desses, vale recordar o julgamento de Fernando Góes: “Seu livro de estreia – “Vida Ociosa” – romance da vida mineira, foi considerado no tempo (1920) e é considerado ainda hoje uma obra-prima. É o ponto alto de sua literatura.” Fernando Sales, com apoio em Wilson Louzada, vai na mesma linha. Antônio Cândido, ainda que aprovando, coloca “Os Bem Casados” em plano superior.

Uma voz solitária se elevou no Rio Grande do Sul, discordando dessas opiniões. Wilson Martins, na sua “História da Inteligência Brasileira”, publicada em 1978, fez referências desfavoráveis ao escritor mineiro. Em tempos mais recentes, Guido Bilharinho foi na mesma direção.

Mesmo na aceitação dos leitores o livro foi bem recebido. A edição se esgotou em pouco tempo. É claro que sua vendagem não poderia se comparar com a das obras de Lobato, o escritor mais célebre e lido de seu tempo. A importância dessa obra, lançada há quase um século, me parece indiscutível e sua leitura encanta até hoje. É pena que só tenha merecido uma nova edição em inexpressiva brochura e sem uma divulgação adequada. Poucas bibliotecas, pelo que tenho observado, dispõem do livro em seus acervos.

“Vida Ociosa” reflete o viver monótono de um magistrado interiorano ou de “um juiz em termos sertanejos”, como dizia seu autor. Obra de memorialista, de fundo autobiográfico, embora fugindo às posições e poses tão próprias do gênero. A narrativa é suave e permeada de um humor leve. Evidencia-se nela o visível conflito entre o juiz sem vocação aparente e o escritor ansioso por produzir mas que se vê diante de “um gordo processo de embargos” que jazia sobre a mesa e exigia sua atenção. Registra o desabafo da vítima da doença literária assoberbada pelo trabalho do juiz: “Serviço até o pescoço. É uma enchente de autos. Essa atmosfera de petições e arrazoados produz-me, como a pasmaceira habitual, efeito desalentador. As impertinências dos advogados, longe de me espicaçar o brio, tiram-me até a coragem de levantar a pena empoeirada da mesinha de trabalho. E já entreouço à volta um zum-zum de descontentamento que me turba o farniente. Preciso fugir, cobrar um pouco de vitalidade para enfrentar com valentia os desgostosos...”
A solução é escapar para o meio rural, para os sítios da região, em especial para o Córrego Fundo, onde é recebido com rapapés e salamaleques pelos moradores, e lá colher impressões com que encher laudas e laudas. E assim se desenvolve a narrativa, tranquila como o próprio autor, trabalhada, segura, límpida, composta com calma, sem premências de tempo ou preocupação com críticos e leitores.

O capítulo inicial é um poema em prosa. A estradinha coleante, ora se aproximando, ora se afastando do rio de águas barrentas, é vista com os olhos do pintor exímio no uso das tintas e contido nas cores esmaecidas. “Um resto da melancolia da noite” paira no ar da manhã na saída do povoado que ainda dorme e o viajante afunda em velhas recordações imprecisas. A velha porteira, na sua envergadura rude de largos tabuões horizontais, emite um rangido prolongado e sonoro que o eco reproduz ao longe. Nasce um sol radioso e sob a soalheira escaldante o viajante prossegue e com mais um estirão avista a fazenda do destino – o Córrego Fundo.

Não tarda a reconhecer o Américo, encarapitado sobre um cupim, a investigar o horizonte na busca do visitante tão esperado. É o filho solteirão de Próspero e Siá Marciana, os fazendeiros, com pretensões a professor e estudioso das ciências. Saudado com efusão, o viajante suarento, é conduzido para o casarão em ruínas mas amplo e acolhedor. Então é um Dr. Félix para cá, Dr. Félix para lá, culminando-o de rapapés, doces, comidas e guloseimas. Com seu incansável arrastar de chinelos, Siá Marciana vai da sala para a cozinha na preocupação constante de bem tratar o visitante. Próspero, já idoso, relata histórias de caçadas e pescarias enquanto conserta as redes danificadas pelos jacarés. Siá Marciana trata as galinhas com punhados de grãos de milho e Américo questiona sobre os mistérios do reino científico. Na sua placa, dormitando, o velho papagaio mal entreabre os olhos. As horas escoam lentas, sons difusos vêm dos fundos, da horta, do pomar e do terreiro enquanto o visitante relaxa, distende os músculos, alivia a cabeça. É verdade que às vezes o acode o remorso de ter deixado o serviço sem férias ou licença. Não demora a aparecer o José, aluno único de Américo, para a aula do dia. O menino aprendia com surpreendente rapidez, ainda que reagisse a pedradas quando o chamavam de Zé Correto, alcunha que abominava.

Próspero recorda uma caçada nada heróica em que ele e os companheiros se deram mal. Trepados num jirau, à beira de um barreiro em que os animais vinham lamber o chão salitroso, aguardavam a chegada da onça pintada. Mas o jirau desabou e com ele os caçadores que tiveram que fugir através da mata inceira, apavorados, na escuridão da noite. E o velho narrador gozava de si próprio num riso pesado de sarro. Sucediam-se incontáveis casos de outras caçadas e pescarias que o Dr. Félix ouvia com intenso prazer.

No silêncio da sala penumbrosa “um ulular remoto encheu a calma da noite com seu lúgubre ecoar. – Que significa esse uivo, Sr. Próspero? perguntei. Fazendo um gesto vago, o velho respondeu: Não sei. A mata é misteriosa. Pode ser um pio de ave noturna ou o urrar de uma fera. Há certos sons indecifráveis, mesmo para os que estão familiarizados com a vida nas brenhas. Daí as superstições, a crença no sobrenatural, tão comum entre os rústicos...”
O silêncio recai na varanda onde todos rodeavam uma bacia de brasas como que hipnotizados pelo lume. E o tempo corre lerdo, macio, sem cuidados e atropelos.

Sobrevém a chuva violenta, as bátegas tamborilando no telhado e nas paredes. O chão vai aos poucos sugando a água e o pátio se transforma num lodaçal. A natureza ressequida parece reviver; o gramado, as árvores, a mata, tudo reverdece. Surgem visitas inesperadas escapando da intempérie. Mas o sol ressurge, o céu retoma seu azul anilado e os viventes, humanos e animais, se reanimam ao frescor da tarde.

Próspero organiza excursões a que Dr. Félix adere a contragosto. A cavalo, visitam a fazenda de Nhô Quim Capitão que, entrevado na cama, anseia por notícias dos conhecidos e do mundo. Vão à cachoeira onde a piracema acontece e tanto peixe enche os balaios a ponto de enojar. Vem à memória a sina triste do sentenciado Lourenço, momento mais alto do livro, revivida de forma impactante. Moído pelos ciúmes, em momento de desvario, ele comete um crime de morte por amor à mulata Frederica. Condenado a trinta anos de prisão, conta e reconta os dias, os meses e os anos da pena, ajudado pelo carcereiro, já transformado em amigo. Mas tudo na vida tem um fim e um dia a reclusão termina. Avelhantado, doente, rengo duma perna e troncho duma orelha, ganha a liberdade. “Ei-lo trôpego, aturdido pelo ar livre e espaço desempeçado, buscando, em terras longes, o paradeiro da mulata. É o último anseio pela felicidade.” Anda e anda, pergunta, indaga, procura, investiga. Estradas sem fim se afunilam no horizonte, curvas tortuosas sobem pelas coxilhas e descem pelas canhadas, e o sonho de reencontrar o amor da juventude parece cada vez mais remoto. Mas vai que um dia, num rancho à beira-chão, chega ao ponto que lhe indicaram. Num esforço para reentrar no presente grita o “Ô de casa!”

Frederica assoma à porta. Está gorda, maltratada pela vida, tem os cabelos nevados. Nem de longe lembra a morena elegante e sensual de outrora. Ela o contempla de longe. Boas tardes. – diz ele em voz cava. – Boas tardes! – responde ela. A mulher o observa sem dar mostra de reconhecer. Você é a Frederica? – indaga com receio. Sou, responde ela Recai um silêncio pesado. Observam-se longamente. Convidado a entrar, ele senta numa tripeça, atiça o fogo do cachimbo e começa a baforar. Antão você é o Lourenço? – inquire a mulata. Sou, responde o visitante num jeitão tristonho. Alarido de crianças ecoa no terreiro chamando-o à realidade. Você mora com homem? – pergunta Lourenço. Com o Martinho – informa ela. – Tenho onze “famílias” dele... O pensamento dele esvoaçou frouxo para a prisão, relembrando tanta espera, tanta paciência, tanta resignação. A vida sabia-lhe amarga. Enquanto estava na prisão o mundo dava suas voltas, tudo mudava e remudava. Não havia mais o que fazer ali. O Martinho é bom sujeito? – ainda perguntou. Bebe, às vezes. Do mais não tenho queixa. A vida é dura. Adeus – murmurou ele. Adeus, Lourenço, respondeu ela. “Guardou o cachimbo, retomou a trouxa e o bordão, e afastou-se, trôpego, paciente, rebocando a custo a perna enferma, como um casco desarvorado, sem rumo, toando ao léu...” Nem um queixume, uma reclamação, um indício de revolta. Fora, o sol dardejava e o calor o enlaçou. A estrada se estendia ao infinito entre curvas sinuosas que levavam para longe, longe, longe.

Não obstante, a vida no Córrego Fundo continua e os dias escorrem para o poço sem fundo do tempo. Tudo acontece devagar. Siá Marciana “opera” o papo do frango Manequinho, atravessado por um graveto; a gata da estima, lanuda e confiada, aparece em busca de afagos; Américo dedilha a sanfona e sons algo desafinados enchem o ambiente; Sontonho, cego de um olho, ocupa-se do engenho e da farinha. Insiste em presentear o visitante com dois polpudos sacos do produto preparado com grande zelo.

Mas Dr. Félix necessita voltar ao trabalho. Afinal, é juiz e deve retomar as inquirições, os despachos e as sentenças, enfrentando o rábula chicaneiro que vivia espiolhando seu trabalho na busca incessante de falhas, senões e nulidades. Que fazer se não voltar ao batente e enfrentar com coragem a luta cotidiana. E assim, levando acavalados na garupa da montaria os sacos de farinha, entra no povoado. Sente-se ridículo aos olhos dos passantes que o observam com curiosidade em virtude de tão estranha carga.

E sobrevém o epílogo humano e comovente. Dias depois, numa visita surpreendente, surgem no foro os moradores do Córrego Fundo. Trazem pequeno presente, acondicionado em elegante caixinha. É um anel valioso, adquirido com as moedas que o juiz lhes deixava em paga da hospitalidade. Foram guardando, em segredo, para comprar a jóia valiosa. Emocionado, Dr. Félix nem sabe como agradecer o gesto espontâneo daqueles seres rudes na aparência mas humanos no coração. “Retiraram-se, por fim. Tornando ao escritório, retomei o estojo e contemplei melancolicamente a jóia coruscante de rebrilhos, calculando comigo o quanto de privações e amarguras se condensariam naquela cercadura chispante e naquela gota de sangue mineralizado. Em vez da festiva alegria com que os pobrezinhos contavam, com que aperto de coração eu recebia a sua dádiva!”

Para compensar, obteve para o Américo a criação de uma escola e sua nomeação como professor, realizando um sonho há muito acalentado. “E foi um nunca acabar de mútuos agradecimentos...”

Como observou José Afrânio Moreira Duarte, “Vida Ociosa” é o retrato do hinterland mineiro de corpo e alma. Ali estão a geografia, a paisagem, a natureza, os usos e costumes, a linguagem e as figuras humanas com seus cacoetes e sua fala característica. É um quadro perfeito, traçado pela mão de mestre de fino observador.

Desde 1977 – quarenta anos! – venho sustentando uma cruzada para reerguer Godofredo Rangel e retirá-lo do injusto ostracismo. Perdi a conta das ocasiões em que pesquisei, escrevi e falei sobre ele. Devo reconhecer que o resultado tem sido pífio mas ainda alimento a esperança de que surja um editor corajoso que reedite suas obras completas, em caprichados volumes, e com ampla divulgação em todo o país. Será demonstrado, então, que a justiça literária também pode demorar mas não costuma falhar.



Comentários sobre o texto podem ser enviados ao autor, no email e.atha@terra.com.br

 

(15 de abril, 2017)
CooJornal nº 1.025



Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
Balneário Camboriú - SC




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