01/04/2017
Ano 20 - Número 1.023

ENÉAS ATHANÁZIO
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Enéas Athanázio


ANHANGUERA

Enéas Athanázio - Colunista, CooJornal


A estação ferroviária era o coração da Vila. Prédio retangular, construído em madeira de lei, tinha extensas abas no telhado, para a frente e os fundos, de forma a cobrirem a plataforma de pedra-ferro e as pessoas que nela se encontravam. Diante dela estacionavam os trens que trafegavam pela chamada Linha Sul, entre eles o misto que vinha do norte, pela manhã, e o que retornava do sul, à tarde. Nesses horários, boa parte da população deixava seus afazeres e se dirigia à estação para acompanhar a passagem dos trens. Constituíam as oportunidades diárias de encontrar conhecidos, inclusive entre os passageiros, ver caras estranhas e até mesmo comprar jornais e revistas do jornaleiro do trem. Naquelas escalas a Vila se agitava por alguns minutos antes de recair no silêncio e na mesmice normais. Em passos lentos, as pessoas retornavam às suas atividades, algumas conformadas, outras invejando no íntimo os que viajavam em direção a outras paragens. A estação se esvaziava e nela só permaneciam o agente, o telegrafista e algum eventual desocupado.

Numa manhã vazia, durante as férias de internato, eu me encontrava na estação. Não me lembro o que fazia, mas, com certeza, procurava a companhia de algum amigo. Foi então que um trem se anunciou, apitando para os lados do norte, e as rodas martelaram nos velhos trilhos de aço, quando margeava a Pirambeira, e o eco respondia nas encostas rochosas da serra. Em pouco tempo a composição entrava na longa curva de acesso à Vila e estacava resfolegante diante da plataforma. O maquinista, viajando sozinho, travou a locomotiva e foi conversar com o agente da estação, entrando na sua sala. Enquanto isso, a máquina permanecia fumegando tranquila, à espera de seu condutor.

Tratava-se de um trem singular e não recordo de ter visto outro igual. Compunha-se de uma pequena locomotiva, de número 235 (número que se gravou para todo o sempre na minha memória), e um único vagão cargueiro, rumando para o sul. Presumo que transportasse algo de muito valor ou importância para justificar um deslocamento tão caro. Mas, enquanto eu matutava no assunto, o maquinista saiu da sala e se dirigiu à locomotiva para prosseguir na viagem. Foi então que me ocorreu a ideia de pedir-lhe uma carona e viajar com ele até a estação seguinte, Anhanguera, distante cerca de doze quilômetros. Para minha surpresa, ele concordou e eu embarquei, acomodando-me no banquinho destinado ao foguista que, no caso, não havia. E foi assim que realizei uma das viagens mais pitorescas de toda minha vida e da qual nunca esqueci, ainda que decorridos tantos anos.

Durante o trajeto conversei muito com o maquinista, de nome Lino, mas ele não revelou o conteúdo do misterioso vagão solitário. Com incrível agilidade ele abastecia a fornalha, retirando com rapidez as achas de lenha do tender, de modo a abrir por curto espaço de tempo a porta arredondada. Na passagem pude observar lugares conhecidos, agora vistos de outros ângulos, fazendas onde o gado pastava, lagoas cujas águas refletiam a luz do sol, plantações de várias cores, a mata verdejante e o mar de pinheiros cujas copas ainda farfalhavam, antes da chegada devastadora das serrarias. Por fim o pequeno trem encostou na estação de Anhanguera e eu saltei, depois de agradecer ao maquinista. O telegrafista, rapaz conhecido, ficou espantado com minha aventura e sugeriu que retornasse no misto da tarde. Eu, porém, preferi voltar a pé.

Decidido, pus o pé na estrada, pisando nos dormentes, e iniciei a caminhada de retorno. Caminhar sobre dormentes é cansativo porque eles são mais próximos entre si que a distância normal do passo, de modo que em alguns trechos caminhei ao lado dos trilhos, quando havia espaço. Cruzar pontes e pontilhões também assustava; não tinham soalho e eu avistava a água pelos vãos, lá em baixo. Para espantar a solidão ou, talvez, o medo, entoava alguns cantos desafinados, declamava versos ou ensaiava discursos para um público inexistente. No interior dos profundos cortes por onde corriam os trilhos os sons ganhavam um tom lúgubre.

Foi com intenso alívio que avistei, afinal, o Corte do Agrião, indicando que chegava aos limites da Vila. Satisfeito comigo mesmo, ainda que cansado, relatei a aventura a umas poucas pessoas e houve até quem duvidasse. Eu não havia me preocupado em obter uma prova da insólita jornada. Que fazer diante do ceticismo humano?




Comentários sobre o texto podem ser enviados ao autor, no email e.atha@terra.com.br

 

(1º de abril, 2017)
CooJornal nº 1.023



Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
Balneário Camboriú - SC




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