15/2/2017
Ano 20 - Número 1.017

ENÉAS ATHANÁZIO
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Enéas Athanázio



 A NOVELA DA NOITE

Enéas Athanázio - Colunista, CooJornal

Obra do acaso. Conversando com um livreiro de Montevidéu, ilustrado em literatura uruguaia, o editor Nicodemos Sena entrou em contanto com a obra de Francisco Espínola, inédita no Brasil. Indagando sobre o título mais adequado à publicação entre nós, o livreiro apontou para o romance “Sombras sobre a terra”, lançado em 1933, e considerado pela crítica uma das mais valiosas produções do romance uruguaio. Empolgado, o editor brasileiro, num ato de arrojo e coragem, publicou o romance pela sua Editora Letra Selvagem (Taubaté – 2016), em criteriosa tradução de Erorci Santana e com esclarecedoras palavras de Ronaldo Cagiano. Uma edição pioneira, colocando diante do leitor brasileiro um escritor quase desconhecido por aqui.

Francisco “Paco” Espínola (1901/1973) nasceu no povoado de San José de Mayo, foi um contestador da ditadura uruguaia da sua época e amargou por algum tempo na prisão. Segundo depoimentos, foi uma pessoa autêntica e verdadeira, escrevendo com absoluta sinceridade, “como sincera foi a sua vida.”

“Sombras sobre a terra” é escrito em estilo muito pessoal e característico, com formações engenhosas, frases que apenas sugerem e sem preocupação cronológica rígida. Muitas manifestações ficam em suspenso para que o leitor as complete. E o texto é inteiriço, compacto, sem divisão em capítulos ou partes. Exige atenção do leitor; é preciso ler-estudando para bem apreender suas nuances.

O romance se ambienta num meio insólito como poucos outros da literatura latino-americana. Seu cenário é o Baixo, ou seja, o meretrício da pequena cidade, contrastando com o Centro, onde vivem as pessoas “sérias”. Segundo alguns, seria a rua Rincón, - a das luzes vermelhas, - onde se movem seres que não são mais que sombras sobre a terra. Nos prostíbulos e botecos das cercanias se cruzam e entrecruzam as prostitutas, seus amantes, fregueses, “maridos”, namorados, músicos, gigolôs e boêmios de todos os naipes. Uma fauna notívaga, nada afeita à luz solar, que vive e age na obscuridade, quando muito sob o luar. Ali as mulheres exercem a mais antiga das profissões com total naturalidade, parecendo conformadas com seu trágico destino. Reina entre elas uma surpreendente solidariedade, como acontece por ocasião do suicídio de uma delas e em outros momentos críticos. Às vezes explodem paixões, enrabichamentos, ciumeiras e choros, mas tudo acaba aplacado com doses da generosa cachaça que corre solta. O autor mergulha fundo na psicologia das chamadas mulheres da vida fácil, analisando o que pensam e sentem ao se submeterem aos caprichos e à luxúria dos clientes. Creio que ele foi um grande boêmio e muito observou dessa vida marginal, não legalizada mas tolerada como uma espécie de mal necessário. O ambiente rústico e pobre é pintado de relance, debuxado sem maiores detalhes. De tempos em tempos o silêncio do Baixo é violado pelas badaladas do sino da igreja, como se o Centro advertisse de que as pessoas sérias estavam atentas. Nesse meio obscuro se impõe o personagem Juan Carlos, moço rico e respeitado, convivendo com uma dolorosa angústia existencial.

“Sombras sobre a terra” se insere entre os romances gauchescos, embora sem heróis e caudilhos. Mas não faltam uma eleição e sua campanha, com cabos eleitorais, falações apaixonadas, perseguições, violência e cadeia, embora seja um momento isolado da narrativa. Por outro lado, o campo aberto está sempre à vista, o vento cortante, o céu límpido, o cavalo, as vestimentas típicas, o poncho, o xiripá, o pala, as esporas. A cuia do mate corre de mão em mão, como os lisos de boa pinga (que imagino branquinha). E ali, enquanto o comércio do corpo acontece, escoam as prosas lentas e pausadas dos gaúchos que entram, cumprimentam com pontas de dedos, e se abancam pelos cantos à luz bruxuleante das lamparinas e os que saem arrastando as esporas no retinir das rosetas. Lá fora os galos cantam, cachorros acoam, o umbu folhudo farfalha e a manhã se anuncia no horizonte, alertando que é hora de encerrar o “expediente.”

Tudo, sem tirar nem por, como nos meus Campos Gerais, que parecem desenhados diante dos olhos com espantosa nitidez. Mais uma vez concluo que nós, latino-americanos, somos todos iguais, feitos de idêntico material.


Comentários sobre o texto podem ser enviados ao autor, no email e.atha@terra.com.br

 

(15 de fevereiro, 2017)
CooJornal nº 1.017



Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
Balneário Camboriú - SC




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