1º/10/2016
Ano 20 - Número 1.000

ENÉAS ATHANÁZIO
ARQUIVO

 

Venha nos
visitar no Facebook

Enéas Athanázio



UMA HISTÓRIA SOMBRIA

Enéas Athanázio - Colunista, CooJornal

O historiador Otto Dov Kulka, nascido na atual República Tcheca e professor da Universidade de Jerusalém, viveu na infância uma experiência terrível e que deixou marcas indeléveis na sua alma sensível de criança. Só agora, depois de tantos anos, conseguiu superar a tristeza e a repulsa que aqueles fatos lhe causam e colocar as lembranças e reflexões sobre o episódio num livro que vem obtendo grande aceitação em todo o mundo e foi lançado entre nós com o título de “Paisagens da Metrópole da Morte”, publicado pela Companhia das Letras, em tradução de Laura Teixeira Motta (S. Paulo – 2014). É uma leitura de arrepiar.

Durante a II Guerra Mundial, quando a chamada solução final do problema judaico funcionava a pleno vapor, em companhia da mãe, Otto foi retirado do gueto de Theresienstadt e levado para o campo de extermínio de Auschwitz-Bierknau, na Polônia. Tinha na época menos de dez anos de idade e encarava aquela situação tomado de imenso pavor, acentuado pela brutalidade do tratamento recebido. Chegando ao destino, conduzidos em vagões de trem destinados ao transporte de gado, cerca de cinco mil pessoas, entre as quais o menino e a mãe, foram dispensados de inspeção, conduzidos a Bierknau e alojados no chamado “campo das famílias.” Não tiveram as cabeças raspadas, conservaram as próprias roupas e as famílias puderam permanecer juntas. Lá encontraram o pai, recolhido desde o ano anterior. Um verdadeiro milagre que acontecia sem explicação: eram poupados dos crematórios que funcionavam dia e noite cerca de trezentos metros daquele local, transformando em cinzas espalhadas ao vento milhares de pessoas. Foram dispensados do “procedimento padrão.” Era inacreditável!

Por uma inspiração maquiavélica, digna do cérebro mais doentio, o bloco dos jovens e das crianças foi transformado num centro cultural, Enquanto os crematórios ardiam sem cessar, as labaredas subiam das imensas chaminés e cadáveres sem conta, peles sobre ossos, permaneciam amontoados por perto, a juventude era educada, encenava peças teatrais, executava concertos musicais, era preparada para um futuro que todos sabiam não existir porque dali ninguém saía com vida. Num supremo requinte de maldade, entoavam em coro a “Ode à Alegria”, de Schiller, louvando a vida e a fraternidade entre os homens. Os sons das cantorias juvenis escapavam pelas portas e janelas, repercutindo no silêncio lúgubre daquele campo infernal. Só muitos anos mais tarde, depois de finda a guerra, aquele mistério foi explicado. Por sugestão de Eichman, conforme documentos encontrados, o “campo das famílias” foi mantido por cerca de um ano para receber a visita dos agentes da Cruz Vermelha Internacional. Consumada a visita, a população do campo foi exterminada sem apelação. Numa só noite, cinco mil judeus foram executados. “Assim, a resposta preparada para satisfazer a todas as possíveis questões sobre o destino dado aos deportados para o Leste, ou seja, o “campo das famílias” em Auschwitz-Birknau, tornou-se supérflua. Por isso, menos de três semanas depois dessa visita, na primeira metade de julho, o campo finalmente foi liquidado” – escreveu o autor no fecho de sua obra (p. 145). Ele só escapou graças à chegada intempestiva das tropas soviéticas que libertaram os prisioneiros.

Três momentos se fixaram de forma definitiva nas lembranças do autor. O primeiro, quando foi separado da mãe e ela conduzida à câmara de gás. O garoto esperava que ela, ao se afastar, olhasse para trás para vê-lo pela última vez. Mas ela não olhou e foi se afastando até virar um ponto escuro na brancura da neve. Só mais tarde ele entendeu que, se ela olhasse, voltaria correndo para ele. E seria fuzilada sem hesitação pelos guardas implacáveis. Nunca esqueceu também da surra aplicada a um prisioneiro na praça central do campo. Quando a cabeça muito branca e raspada recebia os golpes, um traço branquicento aparecia, logo tomado por uma mancha vermelha de sangue. E os urros de dor ecoavam no vazio. Jamais esqueceu as execuções por enforcamento de prisioneiros de guerra em patíbulos armados na praça. Em redor, formando fileiras em forma de U, todos os prisioneiros eram forçados a assistir, inclusive as crianças. No momento supremo, um soldado russo gritou bem alto: Por Stálin! Pela pátria!

Creio que o autor tem razão. É mesmo impossível esquecer coisas assim.


_____________________________


Comentários sobre o texto podem ser enviados ao autor, no email
e.atha@terra.com.br

 

(1º de outubro, 2016)
CooJornal nº 1.000



Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
Balneário Camboriú - SC




Direitos Reservados
É proibida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização do autor.