15/05/2016
Ano 19 - Número 984

ENÉAS ATHANÁZIO
ARQUIVO

 

Venha nos
visitar no Facebook

Enéas Athanázio


CARTA PARA O FUTURO

Enéas Athanázio - Colunista, CooJornal

Sempre que toco no assunto, há quem afirme que não deveria fazê-lo para que seja esquecido. Entendo, porém, que precisa e deve ser lembrado sempre para que não seja esquecido jamais e não corra o risco de se repetir. Refiro-me ao Holocausto que aconteceu durante a II Guerra Mundial, embora o mesmo pensamento seja válido para todos os genocídios perpetrados ao longo da História e em todos os lugares. A hipótese de sua repetição parece remota, mas é necessário notar que o neonazismo vem se manifestando com intensidade, inclusive no momento em que escrevo e até mesmo no Brasil.

Essas observações são feitas ainda sob o impacto de um livro terrível mas honesto, escrito por uma sobrevivente do campo de concentração de Auschwitz-Bierkenau. Trata-se de “Depois de Auschwitz”(*), de autoria de Eva Schloss, nascida em Viena, e que viveu uma experiência aterrorizante nas mãos dos carrascos, da qual só escapou graças à coragem e à determinação de se manter viva, ainda que carregando pelo restante da existência as profundas marcas psicológicas daquele período. Confesso minha admiração, misto de espanto, diante de uma pessoa que foi submetida a tudo aquilo e conseguiu se recuperar e viver uma vida quase normal, útil e repleta de boas realizações. Creio que eu morreria de tristeza e humilhação. Mas Eva tudo superou.

Filha de família judia, a menina vivia com segurança e conforto na casa da família, em Viena, junto com os pais e um irmão. Mas as nuvens negras se acumulam no horizonte, os nazistas ocupam o país e têm início as perseguições contra os judeus. Elas vão num crescendo, até que ela é presa, justamente no dia em que completava 15 anos, e enviada com a mãe para o campo de concentração. Separada do pai e do irmão, que seriam executados, ela se agarra à mãe, pessoa tímida e frágil, lutando de todas as formas para que ambas sobrevivam. Graças à sorte, aos acasos e aos pequenos incidentes, permanecem com vida, ainda que reduzidas a pele e ossos. Mas as tropas soviéticas se aproximam, é possível ouvir a fuzilaria, e começa a trabalheira dos nazistas para esconder os vestígios do que haviam feito. Tarde demais. O campo de concentração é tomado, as atividades extintas, os prisioneiros libertados. Mal acreditando que estão vivas, Eva e a mãe se lançam à procura dos desaparecidos até se convencerem de que ambos estão mortos. Envelhecidas, acabrunhadas, doentes e fracas, iniciam uma luta sem tréguas para reiniciar a vida. É duro, difícil, encontram empecilhos, deparam-se com preconceitos. A duras penas, conseguem recomeçar as vidas interrompidas pela insensatez e a barbárie.

Com o correr do tempo, as coisas vão se ajeitando. As cicatrizes permanecem na alma mas é preciso conviver com elas. A mãe de Eva, tratada na intimidade como Fritzi, se casa com Otto Frank, o pai de Anne Frank, autora do célebre diário que circulou em todo o mundo. Amiga de Eva na adolescência, Anne também foi executada e seu diário revelou os tempos sombrios em que viveu na clandestinidade, padecendo fome, frio e medo. Era uma moça bonita, comedida e sempre bem vestida, mas pereceu como milhões de outras pessoas nas tenebrosas câmaras de gás.

Eva Schloss então se descobre escritora. Escreve um livro que faz sucesso mundial – “A História de Eva”. Lançado em 1988, o livro logo se tornou um best-seller, foi adaptado para o teatro e a peça exibida em vários países. Nele a autora relata todos os padecimentos vividos no campo de extermínio. É um documento doloroso em que ela enfrenta com coragem a lembrança dos fatos e os narra de maneira crua e sem disfarces. Um relato vivo e bem escrito que toca o coração do mais empedernido dos leitores. “Depois de Auschwitz” complementa a narrativa e se estende pelos anos seguintes.

Fixando-se, mais tarde, na Inglaterra. Eva se dedica à preservação do legado de Anne Frank, exercida por Otto até sua morte. Escreve artigos, profere palestras, dá entrevistas, viaja. Como reconhecimento à sua luta, recebeu o título de Membro do Império Britânico pelo seu trabalho à frente da Fundação Anne Frank.

Com este livro, redigido com empenho e ardor, diz ela que pretendia enviar uma mensagem para o porvir. “Ontem à noite, - escreveu ela em 2013, - fiquei acordada me perguntando como deveria ser o final da minha história. Daqui a trinta anos provavelmente todos os sobreviventes do Holocausto já terão morrido, e por isso este livro é a minha carta para o futuro” (p. 299).
Estou certo de que a carta chegará ao destino de todos que a lerem.

__________________________
(*) Universo de Livros Editora – Rua do Bosque, 1 5 8 9
Bloco 2, Conjs. 603/606 – 01136-001 – S. Paulo.

.


_____________________________


Comentários sobre o texto podem ser enviados ao autor, no email
e.atha@terra.com.br

 

(15 de maio, 2016)
CooJornal nº 984



Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
Balneário Camboriú - SC




Direitos Reservados
É proibida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização do autor.