01/03/2016
Ano 19 - Número 974

ENÉAS ATHANÁZIO
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Enéas Athanázio



O mago da palavra

Enéas Athanázio - Colunista, CooJornal



Importante revista de cunho cultural (*) publicou interessante reportagem a respeito do escritor João Guimarães Rosa (1908/1967) e que bem merece um comentário. Sob o título de “O mago da palavra”, alinhou um sem número de informações de especialistas a respeito do célebre autor do “Grande Sertão: Veredas”, enfatizando seu gênio criativo e reformador da língua portuguesa que, segundo alguns, já nem é mais portuguesa, mas brasileira, tal como a praticamos. Grande linguista e poliglota, tinha uma formação tão ampla no assunto que conseguia buscar nas raízes históricas e filológicas os fundamentos dos termos que inventava, tarefa que não é para qualquer um. Mesmo suas mais estranhas criações encontravam base nas raízes da língua. E isso, ao lado da imaginação sem limites e de uma incrível galeria de personagens, tornou sua obra um permanente campo de pesquisas para os estudiosos e um desafio para os leitores comuns. Segundo seus biógrafos, falava português, alemão, francês, inglês, espanhol, italiano, esperanto, um pouco de russo, “sem contar outras tantas línguas nas quais lia ou pelo menos estudara” (p. 23). É de pasmar!

Nascido em Cordisburgo, que ele definia como pequenina e sertaneja, lá viveu até os dez anos, mas ela permaneceu indelével nas suas lembranças infantis. Os campos das redondezas, as montanhas alterosas, a gruta do Maquiné, a lida dos vaqueiros com o gado e o meio social e humano nos antigos “pastos da Vista Alegre” o marcaram para sempre e lá fixaria o epicentro do imenso mundo ficcional que iria desenvolver em linguagem sofisticada e tão pessoal como se fosse um léxico próprio dele. Como afirmou um crítico, ele “criou um universo sem precedentes na literatura brasileira.”

A linguagem que usou é de grande riqueza, muitas vezes estranha e até hermética. No geral, porém, basta pensar um pouco e observar o contexto em que foi usada para entendê-la. Registro aqui alguns exemplos de frases e expressões das mais curiosas, colhidas ao acaso no correr da leitura. “Cristão não se concerta pela má vida levável”, o sertão “vai repondo a gente pequenino”, vai se apoderando como “os tucanos senhoreantes”, “fulão, sicrão, beltrão e romão”, “eu nada sei, mas desconfio de muita coisa” etc. Algumas expressões curiosas: sobrechamado (apelidado), fingidades (fingimentos), nonada (coisa sem importância), prostitutriz (cruzamento de prostituta e meretriz), enxadachim (trabalhador de enxada), fuifim (pequenino, gracioso), denadar (nadar rio abaixo, com a corrente), descambiada (descida), desguardo (descuido), gonçado (desengonçado) etc. São tão numerosas que resultaram em imensos glossários realizados por especialistas, a exemplo de “O léxico de Guimarães Rosa”, de autoria de Nilce Sant’Anna Martins, publicado pela EDUSP (S. Paulo – 2001 – 536 págs.). Segundo a crítica, ela desvendou o mistério do “rosês”.

Resta, por fim, uma palavra sobre os personagens roseanos. Creio que raros autores criaram tão vasto rol de personagens como Rosa, todos bem individualizados e coerentes. Pelo que me lembro, talvez Balzac e Shakespeare. Quem leu o “Grande Sertão” não esquecerá jamais de Riobaldo Tatarana ou Urutu Branco, personagem central e narrador da história, espécie de jagunço-filósofo, como não esquecerá de Diadorim, com seus olhos verdes e certo “donaire” feminino, por quem um Riobaldo abismado sente bem mais que o gostar comum do amigo e que guarda um segredo que só a morte revelará. E a figura incrível de José Rebelo Adro Antunes, o temível Zé Bebelo, chefe de verdadeiro exército com o qual pretendia extinguir a bandidagem no sertão e preferia ser apenas cidadão e candidato? E o inimigo maior, Hermógenes Saranhó Rodrigues Felipes, cujo nome já saiu até em jornal? E outros, muitos outros que se cruzam e entrecruzam nas longas páginas do romance, alguns passageiros e fugazes, outros deixando marcas indeléveis na memória do leitor.

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(*) Revista E, publicação do SESC/SP, número 12, junho de 2014, pp. 22/26 .
 


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Comentários sobre o texto podem ser enviados ao autor, no email
e.atha@terra.com.br

 

(1º de março, 2016)
CooJornal nº 974



Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
Balneário Camboriú - SC




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