15/02/2016
Ano 19 - Número 972

ENÉAS ATHANÁZIO
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Enéas Athanázio



Prisão e liberdade

Enéas Athanázio - Colunista, CooJornal


Fico sempre surpreso com o interesse de minha neta de onze anos pelos meus dias de internato. Para ela, a ideia de uma centena de garotos de várias idades confinados durante meses e anos num casarão imenso é difícil de apreender. E então começam as perguntas mais inesperadas. Como meia dúzia de padres conseguia manter a ordem, evitando pancadarias e fugas, é para ela um mistério indecifrável. Pois se na escola dela, onde só estudam crianças pequenas, é difícil manter a disciplina, imagine-se num grupo de rapazes entre os dez e os dezoito anos de idade!

Os dormitórios, indaga ela, como eram? Explico, então, que havia três: dos pequenos, dos médios e dos grandes. Todos dormiam em camas-patentes enfileiradas e com um estreito corredor no meio. Ela se impressiona com isso e, mais ainda, com o fato de cada um cuidar de sua cama e não se apropriar das roupas dos demais. No refeitório, ter que rezar em pé e em latim, antes e depois da refeição, também parece muito estranho. Mais chocante, porém, é ter que comer de tudo que vem à mesa, sob pena de castigo. Ter que comer berinjela, quiabo, chucrute, beterraba!? Argh! Isso não! E, ainda por cima, não havia sobremesa!

Os apelidos aplicados aos alunos fazem a delícia da menina. Lembro que quase todos recebiam uma alcunha, algumas delas tão arraigadas que apagavam o nome verdadeiro. Existiam, por exemplo, os equinos: Cavalo, Cavalinho, Potranca, Asno. Havia os insetos: Grilo, Gafanhoto, Pernilongo. Havia o Girafa e o Bracatinga, o Palito, o Peru, o Galo Cego, o Ganso, o Chulé e o Fede-fede. Sobre este último corria um versinho mais ou menos assim: “Sai daqui, seu Fede-fede/ Vai feder lá no monturo/ Se aqui tu assim já fedes/ Que dirá na sepultura!” Alguns apelidos eram indecifráveis, como Sexta-rodela, por exemplo.

Sempre que chegava um novato, o pobre se via cercado por um grupo de veteranos. Começavam as perguntas e importunações que deixavam o coitado numa situação constrangedora, sem saber se ria ou chorava. Apareceu um novato, garoto típico do interior, trajando calças meia-canela, com chaves e penduricalhos à cintura, os cabelos arrepiados na nuca. As troças foram muitas, até que alguém indagou:

- Índio, de onde você surgiu?

E o coitado, num rasgo de espírito:

- Vim de Nova Iorque!

Foi a conta, ficou Nova Iorque pelo resto da vida e, depois de formado, mandou colocar na placa profissional o apelido logo abaixo do nome. Caso contrário ninguém o identificaria.

O sistema de pontos também a intriga. É que cada aluno recebia dez pontos por semana. Cada infração que cometia implicava na perda de pontos e, quanto mais grave, mais pontos ele perdia. Caso perdesse mais que cinco pontos, perdia também a “saída” do domingo e teria que permanecer no colégio enquanto os outros perambulavam livres pela cidade. A menina não se conforma com o sistema, ainda mais que não havia recurso de espécie alguma. Não adiantavam choramingos e pedidos.

Por outro lado, permanecer no internato por cinco meses seguidos parece uma ideia que a agrada. Imagine, ficar tantos dias longe do papai e da mamãe, sem ninguém para “pegar no pé”! Ninguém implicando com o não faça isso ou faça aquilo. Isso seria ótimo, enfatiza ela, apesar da saudade que sem dúvida sentiria.

Aquilo que, para nós, constituía uma prisão interminável, com os dias contados até as férias, para ela seria uma libertação.

Bem se diz que muitas vezes uma geração ri daquilo que fazia outra chorar. .
 


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e.atha@terra.com.br

 

(15 de fevereiro, 2016)
CooJornal nº 972



Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
Balneário Camboriú - SC




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