1º/12/2015
Ano 19 - Número 962

ENÉAS ATHANÁZIO
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Enéas Athanázio


PRAGA DE MÃE

Enéas Athanázio - Colunista, CooJornal


Giovanni Ricciardi, professor da Universidade de Nápoles, viveu algum tempo no Brasil e manteve contato com nosso meio literário. Aproveitou a permanência, unindo o útil ao agradável, e realizou entrevistas com mais de 120 escritores de todo o país, depois reunidas em sete volumes com o título geral de “Biografia e Criação Literária.” O sétimo e último volume foi dedicado aos escritores do sul, num total de 19, incluindo desde Mário Quintana, Salim Miguel, Adolfo Boos Júnior, Caio Fernando Abreu, Lia Luft, Domingos Pellegrini e outros. Em meio a tantas figuras destacadas das letras, também fui entrevistado e meu depoimento está às páginas 98 a 106. O livro foi publicado pela Editora da Unisul da Grande Florianópolis em 2009. As entrevistas são todas interessantes, desvendando o cotidiano dos autores, e as perguntas, precisas e hábeis, extraindo de cada um verdadeiras confissões.

Dentre elas, uma das mais longas e minuciosas é a de Guido Wilmar Sassi (1922/2012). Ele foi um dos mais importantes escritores catarinenses do século passado, havendo até quem o coloque em primeiro lugar. Pela qualidade e pelo volume da obra, inclino-me a concordar com estes últimos. Romancista, novelista e contista, foi um autodidata de grande erudição, escrevia bem e era dotado de agudo senso de humor. Ele próprio se considerava um homem temperamental e violento, ainda que contido em seus ímpetos. Não o conheci em pessoa, ou melhor, não me lembro dele, embora ele se lembrasse de mim, ainda garoto, carregado pelo “seu” Urbano, um louco-manso que meu pai protegia e abrigou numa casinha aos fundos de nosso lote. Chegamos a trocar algumas cartas e escrevi várias vezes a respeito dele e sua obra.

Exigente e minucioso, Guido tinha um processo criativo complexo. Relata que fazia mapas dos locais, plantas de casas, genealogia dos personagens e pesquisas completas sobre os temas antes de começar a escrever. Tudo anotava num caprichado fichário. Ao longo da carreira “rompeu” com a literatura e passou 16 anos sem escrever. Nessa época, em carta, ele me dizia que ao avistar um escritor atravessava a rua. Tinha fases de intensa produção e outras de total inércia. Não tolerava escrever obrigado e, menos ainda, com prazos e temas determinados. Gostava de escrever quando tinha vontade.

Tratava-se, portanto, de um processo exaustivo e prolongado, razão pela qual relutava em começar a escrever porque, uma vez iniciada a criação, seria impossível parar. Detestava a solidão, abominando até mesmo a palavra, e considerava o ato de escrever um terrível período de isolamento forçado. Diante disso, afirmou certa vez que a vocação para escrever era praga de mãe, a pior que existe, e a profissão do escritor um ror de sofrimentos. Foi vaiado e xingado.
Fatalista, Guido fixou até a data em que desejaria morrer, em 2014, durante o sono. Mas a Parca não concordou e o levou dois anos antes do combinado, como diz o Boldrin.

Após tantos anos de luta árdua com a palavra, ele se mostrava desanimado com a literatura nacional e, acima de tudo, com a pequena quantidade de leitores em nosso país. Como dizia meu padrasto, ao me ver às voltas com as letras, escrever no Brasil é como produzir chapéus para um povo sem cabeças. Enaltecido pela melhor crítica, traduzido e publicado no exterior, autor de uma obra em que criou o “ciclo do pinheiro”, detentor de prêmios destacados, Guido revelava nas entrelinhas a melancolia de não ser consagrado em nosso Estado. Como na política, autor que não se consagra em sua terra nunca alçará voo no cenário nacional. E aqui as coisas não acontecem bem assim. Talvez por isso ele declarasse se sentir um corpo velho de alma maltratada.

Nascido em Lages, Guido viveu em Campos Novos entre os 7 e os 18 anos, período que considerava o melhor de sua vida. Lá na terrinha, num sótão lúgubre, lia a Bíblia, sem saber o que era, e um velho dicionário que não tinha capa e nem autor. Ali o menino começou a tomar gosto pelas letras. E foi ambientado em Campos Novos, no Poço da Bica, que produziu seu derradeiro conto, a mim dedicado: “O Naufrágio do Black-Ship.” Está publicado na coletânea “Este mar Catarina.”

O romance “Geração do Deserto” foi vertido para o cinema por Sylvio Back com o título de “A Guerra dos Pelados.” Dentre os contos de Guido, considero “Noite” e “Amigo Velho” obras-primas da melhor contística nacional. A entrevista dele, aqui comentada em largos traços, é uma grande lição de literatura e de vida.
 


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Comentários sobre o texto podem ser enviados ao autor, no email
e.atha@terra.com.br

 

(1º de dezembro, 2015)
CooJornal nº 962



Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
Balneário Camboriú - SC




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