15/11/2015
Ano 19 - Número 960

ENÉAS ATHANÁZIO
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Enéas Athanázio


O AMIGO ESCRITO DE MONTEIRO LOBATO

Enéas Athanázio - Colunista, CooJornal

“Não somos amigos falados,
somos amigos escritos.”
Monteiro Lobato


Godofredo Rangel (1884/1951) foi colega de Monteiro Lobato numa “república” de estudantes, na época em que ambos estudavam Direito nas “Arcadas”, em São Paulo. Era um pequeno chalé, situado no bairro do Belenzinho, até hoje existente, e que entrou na história literária como Minarete, assim apelidado pelo poeta Ricardo Gonçalves. Os dois futuros escritores pouco conviveram e depois se separaram, cada qual seguindo seu destino. Rangel ingressou na magistratura mineira e Lobato, depois de ter sido Promotor Público, virou fazendeiro, editor e, por fim, escritor profissional. Poucas vezes se encontraram no correr da existência mas, em 1903, iniciaram uma correspondência literária que durou 44 anos e foi reunida, em parte, nos dois volumes de “A Barca de Gleyre”, de Monteiro Lobato. (Hoje a Editora Globo reuniu num só volume). As cartas-respostas de Rangel nunca foram publicadas e nem se sabe se ainda existem. Pouco antes de falecer ele renovou a proibição de sua publicação, de forma que “A Barca” ficou para sempre um livro incompleto em que só um lado fala e o outro permanece em silêncio. Como biógrafo de Rangel, muito batalhei pela publicação dessas e outras cartas mas não tive sucesso e elas continuam inéditas, talvez para sempre.

Godofredo Rangel foi romancista, novelista, contista, cronista, crítico, gramático e tradutor. Sua obra é pouco volumosa mas de grande qualidade, fato ressaltado pela melhor crítica da época. Não foi, porém, um homem bafejado pela sorte.

Apesar de seu talento, Rangel nunca obteve os favores da boa sorte. Diria mesmo que foi vítima de muitos azares.

Embora magistrado de carreira, passou a vida a braços com dificuldades financeiras, obrigando-se a traduzir sem parar e a realizar tarefas abomináveis para um escritor, como lecionar escrituração mercantil e fazer a contabilidade de uma usina elétrica, o que levou Lobato a apelidá-lo de “eletricista do Sapucaí.”

Além disso, sua vida conjugal parece ter sido conturbada desde o início, como se percebe de certas passagens dos escritos lobatianos. É admirável que, em circunstâncias tão adversas, pudesse escrever obra tão esmerada.

A excessiva proximidade de Lobato, a quem se ligou desde a mocidade, também foi prejudicial. Como a árvore normal que tem por destino nascer à sombra do frondoso carvalho, Rangel acabou ofuscado pela glória literária do amigo. Percebendo isso, Lobato tudo fez para divulgar e enaltecer a obra rangelina.

A intensa repercussão provocada por “Vida Ociosa”, seu romance de estreia, publicado em 1920, por paradoxal que pareça, também o prejudicou. Esse fato, aliado ao grande hiato ocorrido até a publicação de seus livros posteriores, levou os críticos a analisarem sua obra com base exclusiva no romance de estreia, abstraindo do restante e dando uma visão distorcida da realidade. Foi o que ocorreu em quase todos os trabalhos que tenho encontrado, sendo raras as exceções. O próprio Wilson Martins, nos seus impiedosos ataques a Rangel, me deixa a nítida impressão de que sua opinião é formada apenas por “Vida Ociosa”. Assalta-me séria dúvida de que tenha lido os demais livros do escritor.

Wilson Martins, aliás, nos seus livros e artigos, decretou a segunda morte de Rangel – a literária. Depois de suas demolidoras palavras, a meu ver injustas, poucas pessoas se abalançarão a ler, comentar, ensinar ou publicar Godofredo Rangel. É uma empreitada inglória tentar trazê-lo de volta ao cenário das letras. Sei disso de experiência própria.

Rangel, como já disse, proibiu a publicação das cartas enviadas a Monteiro Lobato e que seriam “o outro lado” de “A Barca de Gleyre.” Sua família, no entanto, parece ter estendido essa proibição indistintamente a todas as cartas escritas por ele, impedindo assim o conhecimento melhor da obra e da personalidade do romancista. Nunca consegui entender os temores que tais cartas possam provocar. Rangel, pelo muito que li e ouvi sobre ele, era um homem de bem e nada teria a esconder.

Lembro ainda que, quando Secretário da Cultura de Minas Gerais, José Aparecido de Oliveira se empolgou com meu trabalho e se propôs a editar a biografia, revista e corrigida, agora com o título de “O Amigo Escrito.” Enviei o texto original e diversas ilustrações ao referido secretário. Nesse meio tempo, porém, foi nomeado governador do Distrito Federal e perdi contato com ele. O novo secretário não se interessou pelo assunto e o resultado foi a perda dos originais e ilustrações nos escaninhos da burocracia. Segundo informações oficiais, o material entrou na Imprensa Oficial do Estado, onde foi protocolado, e desapareceu sem deixar vestígios, até hoje. Desconfiado das tocaias burocráticas, eu havia tirado cópias de tudo e o livro acabou publicado, mais tarde, pela Secretaria da Cultura aqui do Estado (1988). Edição grande, embora modesta, hoje esgotada.

Como se isso tudo não bastasse, os originais da nova edição de “Vida Ociosa”, preparados com esmero pela Fundação Casa de Rui Barbosa, tardaram a encontrar editor. Perambularam de ceca em meca, de editora em editora, de mão em mão, até que o livro foi lançado por pequena editora carioca, novata e inexperiente. Brochurinha sem expressão, acrescida de um prefácio oportunista, não teve a menor repercussão. E o pobre Rangel continua tão esgotado como antes. O livro trouxe um posfácio meu.

Seja como for, minha contribuição foi dada e acredito que o essencial está em meus livros, ensaios e artigos. Penso que alguma novidade que acaso surja não alterará o que foi registrado. Será detalhe secundário.

Vários autores de teses e monografias têm solicitado, ao longo dos anos, informações sobre Rangel e sua obra, revelando interesse pelo autor de “Os Bem Casados.” São fatos auspiciosos, revelando que, apesar de tudo, a obra de autoria dele ainda encanta a muitos leitores.

Quantos livros foram traduzidos por Godofredo Rangel? Eis aí uma pergunta com a qual me deparo com frequência e cuja resposta, nesta altura, parece impossível. Seu filho, o Prof. Nello Rangel, afirmava que andavam perto de uma centena, do inglês, do francês e do italiano. Mas a verdade é que, mesmo com a ajuda dele e de outros amigos, só foi possível relacionar até agora 61 obras, incluindo algumas que foram revistas por ele, número aproximado com o qual concordou Raimundo de Menezes em seu “Dicionário Literário Brasileiro.” Monteiro Lobato, em carta de 17 de setembro de 1941, escreveu o seguinte: “Sessenta livros já traduziu você! Tremendo!” (A Barca de Gleyre, pág. 337). Como Rangel ainda viveu por dez anos e trabalhou até o fim da vida, é presumível que muitos outros livros tenham sido por ele traduzidos após a carta de Lobato.

A relação atualizada até hoje é a seguinte:
1 - “A cura pelo pensamento” - Sachet
2 – “A tragédia de minha vida” – Oscar Wilde
3 - “Oscar Wilde, sua vida e confissões” – Frank Harris (Cia. Editora Nacional - 1939)
4 – “Alice no país das maravilhas” – Lewis Carrol
5 - “A crise de nossa civilização”
6 - “As irmãs brancas”
7 – “A ciência da natureza humana” – Alfred Adler
8 – “Bem aventurados os humildes”
9 – “Corsário vermelho”
10 – “Como pensamos. Como formar e educar o pensamento” – John Dewey (Cia. Editora Nacional – Biblioteca Pedagógica Brasileira – 2ª. ed. – 1953).
11 – “A vida de Disraeli” – André Maurois (Cia. Editora Nacional – Coleção Vidas Célebres – 1936).
12 – “Democracia e educação” – John Dewey (em co-autoria com Anísio Teixeira)
13 – “Geografia pitoresca para crianças” – V. M. Hillyer (Cia. Editora Nacional – S. Paulo – s/data) – Tradução e adaptação
14 – “História da filosofia” – Will Durant (em co-autoria com Monteiro Lobato)
15 – “História da civilização” – Will Durant (ambos da Cia. Editora Nacional)
16 – “Pequena história do mundo para crianças” – V. M. Hillyer (Cia. Editora Nacional – S. Paulo – 1951) – Tradução e adaptação
17 – “História dos Estados Unidos” – André Maurois
18 - “Maravilhas da medicina” – Dietz
19 – “Lógica” – L.Liard (Cia. Editora Nacional – 1950).
20 – “Madre Cabrini”
21 – “Noites de vigília” – A. J. Cronin (A Editora José Olympio registra como tradução de Gulnara Lobato de Morais Pereira).
22 – “O caminho da felicidade” – Dr. Victor Pouchet (Editora Civilização Brasileira – Série Obras Educativas)
23 – “Os filhos” – Dr. Victor Pouchet (Editora Civilização Brasileira – Série Obras Educativas)
24 – “Sede otimistas” – Dr. Victor Pouchet (Editora Civilização Brasileira – Série Obras Educativas)
25 – “O apóstolo” – Sholem Asch
26 – “Porque os homens falham” – Drs. M. Fishben e W. A. White (Estudos de onze psiquiatras americanos – Editora Civilização Brasileira - Série Obras Educativas)
27 – “Vida de Santo Agostinho” – Giovani Papini
28 – “Sete homens e uma mulher”
29 – “Vida de Metternich” – Salvador de Madariaga
30 – “Vida de Colombo” – Salvador de Madariaga
31 – “Zola e seu tempo” – Mathiew Josephson
32 – “Os judeus e nós os cristãos” – Oscar de Férenzy (Cia. Editora Nacional, 1939)
33 – Beaumarchais (ignora-se o nome da obra)
34 – Victor Hugo (idem)
35 – “A mulher” – Michelet (Primeira tradução, deveria chamar-se “O Amor”, sendo o título trocado por equívoco)
36 – “O it” – Elinor Glyn (Cia. Editora Nacional, julho de 1940)
37 – “Enquanto é tempo de amar” – Florence L. Barclay (idem, 1944)
38 – “Vendida” – W. Heimburg (idem, 1935)
39 – “O outro milagre” – Henry Ardel (idem, s/d)
40 – “O sheik” – E. M. Hull (idem, s/d)
41 – “O filho de Tarzan” – Edgar Rice Burroughs (Cia. Editora Nacional – Coleção Terramarear – Vol. 24, 1935)
42 – “Tarzan, o rei da jângal” – Edgar Rice Burroughs (idem, idem – Vol. 37, 1935)
43 – “O fantasma de Sandokan” – Emílio Salgari (idem, idem – Vol. 46, 1936)
44 – “A ilha de coral” – R. M. Ballantine (idem, idem – Vol. 10, 1936)
45 – “Perdidos no deserto” – Mayne Reid (idem, idem – Vol. 47, 1936)
46 – “O homem do Hotel Carlton” – Edgar Wallace (Cia. Editora Nacional – Série Negra – Vol. 2, 1934)
47 – “A porta dos traidores” – Edgar Wallace (idem, idem – Vol. 20, 1936)
48 – “As cruzadas” – E. Barringtin (Cia. Editora Nacional – Coleção Paratodos, 1933)
49 – “As cruzadas” – Harold Lamb (Cia. Editora Nacional – 1936)
50 – “Scaramouche, o fazedor de reis” – Rafael Sabatini (idem, idem, Coleção Paratodos, 1936)
51 – “O pimpinela escarlate” – Baronesa Orczy (idem, idem, 1934)
52 – “O clube dos suicidas” – R. L. Stevenson (idem, idem, 1933)
53 – “Talleyrand” – Duff Cooper (Cia. Editora Nacional – 1945)
54 – “A felicidade ao seu alcance” – Dr. Toulouse (Editora Civilização Brasileira – Série Obras Educativas - 1950)
55 – “Sede um dominador” (Ensaio sobre a educação das faculdades superiores e sobre a aptidão para o mando – Editora Civilização Brasileira – Série Obras Educativas)
56 – “O guia da saúde” – Mahatma Gandhi (Editora Civilização Brasileira – Série Obras Educativas)
57 – “A esposa que não foi beijada” – Berta Ruck (Cia. Editora Nacional – 1932)
58 – “Amor e casamento” – Marie Carmichael Stopes (Cia. Editora Nacional – la. Ed. – 1929)
59 – “A história do futuro” – H. G. Wells
60 – “Uma noiva em leilão” – Concordia Merrel (Cia. Editora Nacional – Tradução revista por Rangel – s/d).
61 – “História do poderio marítimo” – W. O. Stevens e A. Westcott (Cia. Editora Nacional -Tradução revista por Rangel – s/d).

É fácil imaginar o quanto de esforço intelectual foi exigido para realizar tais traduções, muitas delas de obras complexas e volumosas. Como asseverou o crítico Fernando Góes, “Gastou-se traduzindo infatigavelmente uma série enorme de livros de toda a espécie, o que, por certo, impediu-lhe de construir a obra que Lobato esperava de seu engenho.” É claro que Rangel tinha consciência disso mas os minguados proventos da magistratura da época impunham esses e outros sacrifícios.

A relação é muito incompleta e qualquer informação no sentido de completá-la será bem recebida. Carlos Heitor Castello Branco, José Afrânio Moreira Duarte e Trajano Pereira da Silva forneceram valiosas contribuições.



 


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e.atha@terra.com.br

 

(15 de novembro, 2015)
CooJornal nº 960



Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
Balneário Camboriú - SC




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