15/08/2015
Ano 19 - Número 948

ENÉAS ATHANÁZIO
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Enéas Athanázio


CRÔNICA DIFICIL

Enéas Athanázio - Colunista, CooJornal

Quando eu chegava em Campos Novos, ele era o primeiro a aparecer. Parecia farejar minha presença. Avistando-me, já abria os braços, e exclama com indisfarçável sentimento: "Ô Ineias! Que saudade!" E me abraçava com euforia. Não me largava enquanto eu andasse por lá.

Logo que me formei, quando montei minha banca na terra natal, fui morar no casarão que pertencera aos meus avós, povoado de lembranças e, talvez, de alguns fantasmas que, para sorte minha, eram benignos e nunca me incomodaram. Ele então passava uns tempos comigo, quando saíamos para alguma visita às boates do "Pinheiro Ralo", uma ou outra festa ou para fazer o "footing" no jardim. Uma lembrança que me ficou dessa época foi o seu desejo de se declarar em inglês à amada do momento. Passei muito tempo tentando ensinar-lhe o "I love you, miss!", sem o menor sucesso. Ele repetia minhas palavras, mas quando tinha que dizer sozinho não passava do "I" e logo indagava: "Como é que é mesmo?...", até que esquecemos da tal manifestação amorosa. Teria que tentar a conquista na velha língua dos portugas. Mas, pelo que me consta, aquele amor nunca se realizou.

Escavando a memória, não consigo lembrar quando nos conhecemos. Tenho a sensação de que isso acontecia dês que o mundo é mundo. Frequentava a chácara dos pais dele desde criança, onde me fartava de frutas e das historias de Dona Cecilia, sua mãe, especialista em "causos" de visagens e banditismos dos tempos de dantes. Tio Tino, pai dele, fora amigo inseparável do meu. Muitos anos mais tarde, seus olhos ainda marejavam quando falava do amigo tão cedo desaparecido. F oi, pois, uma amizade de duas gerações.

Muito cedo, garotos ainda, estávamos sempre juntos nas minhas férias. Nosso tempo era usado nas andanças pelas fazendas, nos banhos no Poço da Bica, nas caçadas de tatus para os lados da Restinga, nos namoricos e nas caminhadas sem rumo. Mais tarde, nos tempos de atividade profissional e politica, foi meu companheiro de viagens, vivendo aventuras que "dariam um romance." Enquanto batuco estas mal traçadas, lembro-me de episódios que me levam a rir sozinho.

Numa noite fria, quando proseava num bar, alguém teve o desplante de falar mal de mim, candidato na ocasião. Nada de gravidade, bobagens de adversário, mas foi a conta: ele reptou o sujeito para que repetisse e, como ele o fez, quebrou-lhe o cavaquinho na cabeça. Armou-se tremendo sururu e ele foi processado. Está claro que fui seu defensor, sustentando a tese da legítima defesa da honra de terceiro, que era eu próprio, no caso. Apesar da insólita argumentação, foi absolvido, mesmo porque o juiz não conseguia esconder a simpatia por ele.

Alguns anos atrás, esteve uns dias aqui em casa. Andamos pela cidade, pelo litoral, pelas areias da praia. Proseamos como nos velhos tempos, noites a dentro, rindo à lembrança de alguns acontecidos. Tudo documentei em fotos, como se previsse algo, e ele mostrava a todos, lá na terrinha, o álbum da sua vilegiatura litorânea. Foi a ultima vez em que nos vimos!

Seu nome de batismo era Osvaldino Sanford Lemos, embora também fosse conhecido por Nenê, como o tratava Dona Cecília, Libino, Liba e Tio Liba, alcunhas de esotérica origem, mas principalmente pela última, aquela que mais se vulgarizou.

Numa noite comum, dessas que nada prometem, eis que chegou a noticia, seca e dura como são as más notícias: Tio Liba havia falecido durante uma cirurgia cardíaca, em Curitiba, e já fora sepultado. Ninguém se lembrou de me avisar e não pude lhe dar um último adeus. Fiquei estatelado na cadeira, assombrado, incrédulo. Ele não existia mais e um novo vazio surgia na terrinha, de cuja paisagem urbana ele fazia parte, como as velhas arvores e caramanchões do jardim, as ruas largas e retas. E ainda por cima, morreu em cidade grande e estranha, que tanto detestava, cercado por desconhecidos. A terrinha nunca mais será a mesma e imagino como será visita-lo no lugar onde "estuda a geologia do campo santo", como dizia mestre Machado de Assis. Será tão difícil como escrever estas linhas, alinhavando a mais difícil crônica que já escrevi. Espero, porém, que de algum recanto entre o céu azul e o verde tapete dos campos ele esteja acompanhando meus passos como fazia sempre que eu andava por lá. Adeus, amigo!


Comentários sobre o texto podem ser enviados ao autor, no email
e.atha@terra.com.br

(15 de agosto, 2015)
CooJornal nº 948



Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
Balneário Camboriú - SC




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