15/06/2015
Ano 19 - Número 940

ENÉAS ATHANÁZIO
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Enéas Athanázio

 

LIMA BARRETO E O TEATRO

Enéas Athanázio - Colunista, CooJornal

Faceta pouco analisada da obra de Lima Barreto (1881/1922) é a que diz respeito ao teatro. É verdade que não é muito o que ele escreveu sobre e para teatro, não chegando a constituir uma porção considerável no universo de suas Obras Completas, conforme são hoje publicadas. Mas, como intelectual bem informado e dotado de espírito universalista, a arte cênica esteve sempre nas suas cogitações. Suas páginas no gênero, embora pouco numerosas, revelam que pensava no assunto, estudava-o à sua maneira e tinha ideias sobre ele.

Folheando os livros de sua autoria, encontramos alguns textos bem representativos, espalhados aqui e ali. No artigo “Sobre o nosso teatro” (1), começa declarando que não era frequentador assíduo das plateias, não porque negasse valor e talento aos autores e artistas, mas em virtude do mau gosto do público, incapaz – no seu entender – de bem julgar e valorizar as peças encenadas na época. Episódios que cercavam o teatro daqueles dias, e que ele acompanhava com atenção pela imprensa, pareciam irritá-lo muito. O puritano que era, ainda que com aparência de boêmio, não gostava das “fofocas” inevitáveis no meio teatral e que constituíam justamente a delícia de grande parte de seus frequentadores.

Algumas passagens parecem indicar que o teatro, para ele, eram os grandes espetáculos, com elenco numeroso, roupagens e cenários ricos, muita luz e ação. “O teatro é por excelência uma arte da sociedade, de gente rica – escreveu. – Ele exige vestuários caros, joias, carros – tudo isso que só se pode obter com a riqueza. Pois os ricos da Bruzundanga não animam as tentativas que se têm feito para fazer surgir um teatro indígena, todas têm fracassado” (2). Nesse trecho ele renova as críticas ao público e deixa claro que não o agradavam as peças mais modestas. Mas, por outro lado, as dificuldades econômicas de hoje confirmam de certa forma sua afirmação, eis que proliferam as encenações com poucos personagens em que às vezes nem o cenário muda.

Em “Sobre o teatro” (3) e “Abertura do congresso” (4), volta a abordar o tema. Neste último artigo, ironizando o “reconhecimento” dos deputados na República Velha, monta uma cena teatral, embora isolada, num cassino, onde se ouvem o bater das fichas de madrepérola de mistura com vozes femininas de sotaques estrangeiros bem carregados. Como sempre que se dispõe a criticar, sua pena carrega nas tintas e desenha um episódio grotesco. No conto “Uma noite no Lírico” (5), a presença do teatro não sai do título.

Como autor teatral, porém, Lima Barreto ensaiou apenas duas tentativas. Suas memórias e registros, em geral tão minuciosos, não esclarecem a razão de ter produzido tão pouco no gênero. Talvez não tenha lhe sobrado tempo, pois sua vida foi breve.

“Casa de Poetas” e “Os Negros” constituem suas únicas obras no gênero. A primeira é uma comédia leve, em apenas um ato e com cinco personagens, que decorre numa única sala. Lima Barreto, na prática, renega sua teoria e desenvolve as ações das figuras numa só peça de uma casa carioca. O diálogo é vivo, correntio, mesmo que surjam algumas palavras muito de seu gosto (dunquerques, donaire, bibelots, dous, cousa etc.). Mas o humor está presente, em especial no inesperado do desfecho e na ingenuidade do Dr. Clarimundo.

“Os Negros”, ao longo de sete páginas, aparece como uma tragédia das tantas inspiradas pela escravidão, instituição cuja lembrança horrorizava o autor. Os personagens são todos negros fugitivos da fazenda, alguns definidos apenas pela sua condição (velho, negra, moça, criança), num cenário mais pretensioso, ao ar livre. No diálogo surgem lembranças da pátria remota e da vida mais próxima, no eito. Mas o enredo parece mal desenvolvido, apenas debuxado, tanto que o autor põe como subtítulo uma indagação: “Esboço de uma peça?”

Ambos os textos constituem hoje a parte final do volume denominado “Marginália” (6). Creio não errar, com base na leitura dessas páginas, afirmando que Lima Barreto, se tivesse realmente desejado, teria alcançado destaque nesse gênero, tal como aconteceu no conto, na crônica e em especial no romance.
A obra de Lima Barreto tem servido de inspiração para os autores teatrais, embora não tanto como seria de esperar de textos de tal conteúdo humano e carga emocional. O “Grupo Mostrai que Mostrais” teatralizou o romance “Numa e a Ninfa”, que pude assistir na Universidade Federal Fluminense, em Niterói. Com boa adaptação, a peça tinha seu ponto algo na figura de Lucrécio Barba-de-Bode, um dos personagens mais curiosos e autênticos da prosa limabarreteana. O sucesso da peça foi imenso e permaneceu muito tempo em cartaz. Infelizmente, o talentoso grupo desapareceu, como outros tantos.

A mais arrojada tentativa de teatralizar a obra de Lima Barreto, no entanto, é de autoria de Buza Ferraz e, pelo que me consta, até hoje não foi publicada. Trata-se da adaptação do “Triste fim de Policarpo Quaresma”, obra-prima do escritor carioca, para uma grande companhia teatral. Num trabalho fiel e primoroso, o adaptador transformou em verdadeira peça teatral a história amarga desse homem que, por ser patriota, acaba sendo fuzilado. Embora pareça impossível, os diálogos bem conduzidos, usando da melhor forma as palavras e imagens do próprio romancista, aumentam o impacto de muitas passagens, especialmente no desfecho. A curiosidade crescente vai se misturando à revolta e à comiseração, numa confusão de sentimentos que só as boas obras literárias conseguem provocar.

O texto adaptado mantém bem viva a “arraia-miúda” que o romance retrata: funcionários subalternos, gente suburbana, a pequena classe média dos tempos da República Velha. Ali aparecem tipos como o tocador de violão Ricardo Coração dos Outros (inspirado em Catulo da Paixão Cearense), o general Albernaz (que vivia e recordar combates onde não esteve), Maria Rita e outros tantos.

O romance também foi adaptado para o cinema. O filme “Policarpo Quaresma” é um marco da cinematografia nacional.

Esse livro mais que centenário, escrito por Lima Barreto em 1911, foi a definitiva consagração do autor. Seu aproveitamento pelo teatro é uma forma de valorizá-lo como merece e, ao mesmo tempo, elevar o nível da arte cênica nacional.

(Artigo publicado em “Caixa de Pont(o)”, primeiro e único jornal dedicado ao teatro publicado em Santa Catarina, editado por Marco Vasques e Rubens da Cunha, cujo lançamento aconteceu em maio, em Florianópolis).

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As fontes indicadas correspondem às Obras Completas de Lima Barreto publicadas pela Editora Brasiliense (S. Paulo).
(1) “Bagatelas”, pp. 221/227;
(2) “Os Bruzundangas”, pp. 110/111;
(3) Idem, pp. 160/161;
(4) “Marginália”, pp. 223/225;
(5) “Histórias e Sonhos”, pp. 225/230;
(6) “Marginália”, p. 292.

 

Comentários sobre o texto podem ser enviados ao autor, no email e.atha@terra.com.br

(15 de junho, 2015)
CooJornal nº 940



Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
Balneário Camboriú - SC




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