01/11/2014
Ano 18 - Número 913

ENÉAS ATHANÁZIO
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Enéas Athanázio



CONTOS SERTANEJOS

Enéas Athanázio - Colunista, CooJornal


A leitura dos contos de Afonso Bezerra (1907/1930) revela um caso literário dos mais curiosos (*). Escritor de linguagem clássica, erudita, às vezes até rebuscada, é, no entanto, autêntico regionalista, embora mais de fundo que de forma – como diria o crítico Lauro Junkes. Dois trechos que transcrevo a seguir servem para demonstrar a linguagem e o estilo. “O sol no seio de um terreno escampado, sem o amparo agradável das sombras compactas, numa profusão satânica de chispações ardentes, envolvia tudo numa temperatura de fogo, e ressequia a laringe e estalava os lábios de quem caminhasse a pé, àquelas horas, ao beijo ígneo de seus raios” (p. 35). E mais: “A natureza como que experimentara um colapso formidando, A terra toda tremeu, agitada por uma como convulsão titânica dos elementos. Consumara-se um deicídio” (p 39). São frequentes frases de sabor erudito e de uso comum entre os escritores clássicos: “ainda de uma feita”, “vai se não quando”, “vim a dar acordo de mim” etc. Sou tomado pela sensação de estar relendo os textos reunidos na célebre antologia de Carlos de Laet. Aliás, é admirável que um escritor tão jovem, falecido aos 23 anos incompletos, já manejasse um linguajar tão apurado.

Não obstante, ele semeou termos e expressões regionais no texto, num casamento de aparência impossível, mas que se consumou. Dosou tais elementos de forma contida, sem exageros, e conseguiu reproduzir a linguagem do sertão, onde quase todos os contos estão ambientados. O sertão, como palco dos acontecimentos, aparece descrito de maneira perfeita e o leitor chega a sentir o calor intenso, a secura reinante, o pó que paira no ar parado e o sol implacável dardejando. Não será demais lembrar que o sertão, para nós sulistas, é a mata cerrada, a floresta inceira, enquanto para o nordestino é a caatinga, o semiárido, o quase deserto. Alguns trechos exprimem bem essa sensação: “E assim, descreve o viajante – ao amplexo causticante de um sol senegalesco, percorrem-se quatro a cinco léguas, e por vezes mais, em caminhos rasgados no seio inóspito de uma faixa de mato, por picadas sombrias e desabitadas, onde não se encontra a esperança de uma cacimba, para matar a sede devoradora, com a esmola de um copo d’água” (p. 19).

Nessas narrativas ele explorou a vivência do sertão. As crendices, as superstições, o crime e a vingança, as viagens penosas, os rasgos de bondade, as visagens, os ranchos e as taperas, a doma dos cavalos, a festa de São João e mil outras facetas do viver sertanejo. O apego do homem do sertão à sua terra, apesar de tudo, se manifesta pela boca dos personagens. Assim, Quirino Pereira, morador maltratado pela seca e à beira da miséria, quando indagado por que não abandona tudo e ruma ao litoral, responde taxativo: “Sei lá... Coisas de quem é besta... Tenho pra mim que, onde a gente nasce, deve se enterrar. Aqui no cemitério da vila, estão todos os meus, desde os troncos velhos. Pra que ir atrás duma cova noutro canto?” (pp. 87/88). E como o outro não entendia aquela posição, olhou-o por baixo e deixou transparecer no rosto seu descontentamento. Esse agarramento com o solo também se encontra no campeiro, é um traço comum aos dois.

O livro é uma agradável surpresa para quem desconhecia seu autor e uma leitura instigante para os apreciadores da história curta. Foi organizado pelo escritor Thiago Gonzaga, autor também de excelente ensaio introdutório. Afonso Ligório Bezerra nasceu em Carapebas, hoje a cidade que adotou seu nome (Afonso Bezerra), e faleceu em Natal (RN). Ingressou na Faculdade de Direito do Recife mas não chegou a concluir o curso em virtude da moléstia que o vitimou. Escritor e jornalista, viu muitas de suas produções publicadas em destacados órgãos da imprensa do seu Estado e do País. Católico convicto, sua religiosidade transparece em vários de seus textos.

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(*) “No rancho dos Bentinhos e outros contos”, de Afonso Bezerra,
organizado em edição póstuma por Thiago Gonzaga, publicado por
Sebo Vermelho Edições, Avenida Rio Branco, 705, NATAL, RN. 

(01 de novembro, 2014)
CooJornal nº 913



Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
e.atha@terra.com.br
Balneário Camboriú - SC


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