15/10/2014
Ano 18 - Número 911

ENÉAS ATHANÁZIO
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Enéas Athanázio



TRAIÇÃO PREMIADA
 

Enéas Athanázio - Colunista, CooJornal

O movimento livreiro nacional vive ao embalo de ondas que, quase sempre, refletem as imposições do mercado internacional. No momento em que escrevo, para citar um exemplo, estão nas livrarias três ou quatro biografias de Coco Chanel, de autores diferentes, disputando o interesse do leitor. A razão do repentino interesse por ela é um mistério, ainda mais que não parece existir qualquer fato daqueles que costumam provocar essas ondas.

Entre essas biografias está “Dormindo com o inimigo – A guerra secreta de Coco Chanel”, de autoria do jornalista norte-americano Hal Vaughan (Companhia das Letras – S. Paulo – 2011), trabalho minucioso e fundamentado, que acabo de ler com interesse. Com base em amplas fontes informativas, o autor reconstituiu a trajetória de Gabrielle “Coco” Chanel, a menina francesa pobre, criada num abrigo, que se tornou a poderosa estilista e perfumista que dominou por longo tempo o “grand monde” da França e depois de todo o mundo.

Segundo o autor, Coco Chanel libertou com sua moda as mulheres dos trajes convencionais e do espartilho, criando o elegante simples, com destaque para o chamado pretinho básico. Além disso, graças a uma secreta combinação de ingredientes, dentre eles uma espécie de jasmim que só existe na França, criou o perfume Chanel Número 5, acondicionado num frasco típico e imutável, que ganhou as preferências mundiais. Com invulgar faro para lançamentos e promoções em momentos adequados, Coco prosperou de maneira admirável e amealhou imensa fortuna, cujo montante nunca se conseguiu saber ao certo, uma vez que espalhou sua riqueza por vários países. Embora viciada e dependente de cocaína desde cedo e fumante inveterada, sempre com o cigarro Camel nos lábios, teve vida longa, recheada de aventuras e incontáveis amantes.

Mas veio a II Guerra Mundial e a França foi invadida e ocupada pelas forças nazistas. Pétain e Laval formaram um governo títere e colaboracionista, submisso aos ditames de Hitler. Ambos, mais tarde, seriam condenados à pena de morte, mas só o segundo foi executado. E naquele ambiente de medo e opressão, Chanel fez pesadas acusações contra sua própria pátria e passou a colaborar com o inimigo, tornando-se agente de informações, ou seja, espiã. Entre seus mais duradouros amantes estava um oficial da inteligência alemã. Para completar, Coco foi declarada antissemita desde a adolescência.

Libertada a França, o ódio dos patriotas se voltou contra os colaboracionistas e de forma muito aguda contra as mulheres chamadas de “colaboracionistas horizontais”, como a própria Coco foi também rotulada. As que tiveram relações com os invasores sofreram maus tratos e foram humilhadas, forçadas a desfilar pelas ruas com a suástica nazista nas cabeças raspadas. Coco, porém, usando de mil artimanhas e contando com ajudas poderosas, refugiou-se no interior e depois na Suíça, de onde movimentava os cordéis que a salvariam. Foi aos poucos comprando o silêncio daqueles que poderiam incriminá-la, custeando o tratamento médico de um, subvencionando uma pensão para outro e assim se esquivando de qualquer punição. Interrogada por magistrados, eximiu-se de qualquer responsabilidade, valendo-se, ao que parece, da ausência de informações de que os interrogadores dispunham naquela época. Nem de longe se sabia ainda do seu elevado grau de comprometimento. Mas a verdade é que nada lhe aconteceu, retornou a Paris, onde foi bem recebida e acatada, chegando mesmo a ser convidada pela esposa do presidente Pompidou. Nessa ocasião ainda fez humor, comentando ser a primeira vez em que uma costureira recebia convite da primeira dama. Com sua imensa fortuna à disposição, calculada em 54 milhões de dólares em 2010, voltou à ativa e viveu tranquila até a morte, aos 81 anos, em 10 de janeiro de 1971. Faleceu num suntuoso aposento do Hotel Ritz, onde residia.

Apesar do quanto fez contra seu país, foi por ele regiamente compensada. “Nunca conheci o fracasso” – gabou-se no fim da vida.
“Os ricos, os espertos e os bem relacionados escaparam à punição – voltaram depois da tempestade...” – desabafou Gaston Defferre, membro da Resistência Francesa que havia arriscado a própria vida na luta pela libertação da França.


(15 de outubro, 2014)
CooJornal nº 911



Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
e.atha@terra.com.br
Balneário Camboriú - SC


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